quarta-feira, 4 de agosto de 2010

JUSTIÇA POR UMA "MERRECA": QUANDO O CIDADÃO IMPLORA PELO QUE É SEU.


Baseado em fatos reais.

Caso 1:
Pedro foi a uma agência bancária, a fim de receber uma verba a que tinha direito. Recebeu um bolo de dinheiro e deixou aquela agência bancária, se dirigindo a uma outra agência, de outro banco, com o objetivo de efetuar o pagamento de umas contas.
Para a sua surpresa, no ato do pagamento de suas contas, Pedro descobriu que em meio ao bolo de dinheiro havia uma nota de cinquenta reais falsa. A gerente da agência bancária reteve a nota e Pedro tomou ciência de que a nota seria enviada para o Banco Central.
Além do constrangimento pelo fato de Pedro parecer um emissor doloso de nota falsa, ele foi impedido de quitar uma das contas, considerando que não possuía outra nota como aquela. Acabou pagando a mencionada conta no dia seguinte, mas com multa e juros de mora.
Em posse dos documentos que comprovam a emissão de uma nota falsa por um banco, Pedro apresentou estes mesmos documentos a este banco, recebendo como resposta que seu pedido de concessão de uma nova nota de cinquenta reais seria analisada pela direção da instituição financeira.
Passados dez dias, Pedro retornou à agência bancária que lhe deu a tal nota falsa. Em outra surpresa, Pedro soube que seu pedido de devolução de uma nota de cinquenta reais foi indeferido pela direção da instituição financeira, a tal que lhe emitiu a nota falsa.
Diante do prejuízo financeiro, pela perda de uma nota de cinquenta reais, e da indignação pelo constrangimento passado no outro banco, como se fosse um criminoso (emissão dolosa de nota falsa constitui crime), Pedro decidiu processar o banco que emitiu a nota falsa e que não quis ressarci-lo por isso. Ingressou com uma ação judicial no final do ano de 2004.
Após quase cinco anos de tramitação do processo, a sentença deu ganho de causa a Pedro, condenando o banco que lhe emitiu a nota falsa a indenizá-lo pelos danos morais em quinhentos reais.
Inconformado, Pedro recorreu da sentença, promovendo uma apelação, a qual, um ano depois (o processo já tramitava por seis anos), manteve a sentença, quanto ao mérito, mas aumentou a indenização por danos morais para dois mil reais.

Caso 2:
Ana Maria saiu de casa, pela manhã, com o intuito de obter um empréstimo junto a uma instituição financeira para a compra da tão sonhada casa própria. Muito organizada e em dia com todas as suas obrigações, inclusive financeiras, Ana Maria levou consigo todos os documentos necessários à obtenção de tal empréstimo.
Além de possuir uma renda razoável, uma quantia necessária ao sinal do financiamento, emprego fixo e de estar em dia com todas as suas obrigações, Ana Maria sabia que seu nome jamais havia constado em algum cadastro restritivo de crédito.
Ana Maria chegou à agência da instituição financeira, apanhou uma senha para o atendimento e aguardou a sua vez. Chegada sua hora, Ana Maria apresentou todos os documentos necessários ao financiamento para a aquisição de sua casa própria.
Todavia, Ana Maria teve a surpresa de saber que seu nome constava no cadastro de (consumidores) maus pagadores. Seu nome constava naquele cadastro restritivo de crédito por uma suposta dívida.
Ana Maria explicou ao funcionário da agência que nada devia a qualquer pessoa ou instituição, inclusive ao banco que se dizia credor de uma dívida. Ela deixou a agência e se dirigiu à sede do cadastro de inadimplentes. E lá chegando, teve a confirmação de que seu nome estava registrado naquele cadastro.
Ana Maria entrou em contato com o referido banco, tendo como única resposta que era devedora e que, no máximo, o pagamento da dívida poderia ser negociado.
Ana Maria ingressou com uma ação judicial em face do banco que efetuou o registro de seu nome no cadastro de inadimplentes e que se dizia credor da dívida. Seu advogado juntou as provas e fez as alegações, as quais foram contestadas pelo tal banco, com todos os argumentos insuficientes à justificativa do fato.
Após quase sete anos de pendenga judicial, a decisão definitiva deu ganho de causa a Ana Maria, reconhecendo que esta sequer havia celebrado um contrato de empréstimo com o banco (que se dizia credor). Condenou ainda este banco a pagar a Ana Maria a quantia de cinco mil reais, com juros e correção monetária.

Caso 3:
João e sua família residem a mais de vinte anos num bairro na periferia da cidade. Desde o tempo em que lá foram morar, nunca tiveram uma gota de água sequer nas torneiras de sua residência, apesar dos inúmeros apelos à companhia de abastecimento de água da região.
Entretanto, mesmo sem receberem uma gota de água em sua residência, João e sua família sempre receberam as faturas referentes ao serviço de abastecimento por este bem, via correios. Isso, sem esquecer que o nome de João constava no cadastro de inadimplentes, haja vista o não pagamento das faturas pelo serviço de abastecimento de água.
O máximo que a companhia de abastecimento de água fez, foi enviar a casa de João uma equipe técnica, a fim de apurar os fatos por ele alegados. Os técnicos constataram que havia uma falha na tubulação (pertencente à própria companhia) de água que deveria abastecer a residência de João e seus familiares. Além disso, viram os técnicos da empresa que não havia hidrômetro na casa de João. Então, os mesmo técnicos se perguntaram como era realizada a aferição do consumo de água na residência de João, cujos valores só cresciam nas faturas.
Em suma, João não recebia água em sua residência, mas recebia, mês a mês, as faturas, cobrando-lhe valores por um bem que sequer usufruía.
Cansado da situação e informado sobre seus direitos, João decidiu acionar a empresa de abastecimento de água junto ao Poder Judiciário.
Com o intuito de dirimir o conflito, foi marcada uma audiência de conciliação para seis meses depois do protocolo da entrada (chama-se distribuição) da ação judicial. Nesta ação, além dos pedidos de instalação de um hidrômetro e do reparo na tubulação de água (de propriedade da companhia de abastecimento), João pleiteou indenização por danos morais, eis que seu nome havia sido incluído no cadastro de inadimplentes, sem que tivesse qualquer culpa.
Cabe lembrar que João recebia as faturas pela água que sequer chegava à sua residência.
No dia e hora da audiência de conciliação, João e os prepostos da empresa de abastecimento de água se sentaram à frente do conciliador. Após as advertências do conciliador sobre os riscos de uma ação judicial – demora no curso da ação, possibilidade de derrota (sucumbência) das partes etc. – chegou-se aos seguintes termos: a empresa de abastecimento de água instalaria o hidrômetro na residência de João, promoveria o reparo na tubulação de água e retiraria o nome de João do cadastro de inadimplentes, enquanto João, em contrapartida, pagaria parte do débito que constava em seu nome (diga-se, por uma dívida que sequer havia feito, uma vez que nunca usufruiu do abastecimento de água em sua residência).

Para refletir:
Estes são três casos de cidadãos que lutaram por seus direitos. Conscientes do que tinham direito e diante de fatos constrangedores, no mínimo, Pedro, Ana Maria e João procuraram o Poder Judiciário.
Pedro e Ana Maria obtiveram sucesso em seus respectivos intentos judiciais, mesmo após anos de espera. Pedro conseguiu a indenização por danos morais no valor de dois mil reais, além de ser-lhe paga uma nota de cinquenta reais, a título de danos materiais. Enquanto isso, Ana Maria recebeu a quantia de cinco mil reais.
Nos casos de Pedro e Ana Maria, os magistrados entenderam que houve dano moral, mas preocupados em “não causar enriquecimento sem causa” em favor daqueles, decidiram por indenizações que julgaram ser razoável e proporcional aos danos experimentados. Além disso, seguindo a doutrina jurídica e a jurisprudência (entendimento reiterado dos Tribunais de justiça), tomaram cuidado de não condenar os bancos em quantias consideradas altas.
Tudo parece fazer sentido se não fossem alguns detalhes. Tanto Pedro como Ana Maria não contribuíram para os danos que lhes foram causados pelos bancos. Ana Maria sequer fez um empréstimo num banco. Como poderia ter seu nome incluído no rol de maus pagadores?
Além disso, ambos os processos duraram mais de cinco anos. Por anos a fio, as ações judiciais de ambos tramitaram nos Tribunais de Justiça, até que, finalmente, decisões definitivas foram tomadas.
Ademais, cabe ressalva para o fato de que os réus nas duas ações judiciais eram instituições financeiras de grande porte, bancos com lucros líquidos na esfera de bilhões de reais.
Vigoram princípios entre os magistrados (juízes e desembargadores) de que as decisões judiciais, além, de reparar ou compensar os danos causados, devem servir de meio para “punir e educar” (finalidade punitivo-pedagógica da decisão judicial) as empresas fornecedoras de produtos e prestadoras de serviços, com o objetivo de melhor atender os clientes e os cidadãos, evitando os riscos e danos de seus empreendimentos e suas atividades.
Engraçado, não? As duas instituições financeiras acionadas respectivamente por Pedro e Ana Maria ganham anualmente bilhões de reais, tendo a primeira sido condenada, após cinco anos de pendenga judicial, ao pagamento de uma quantia de dois mil reais, enquanto a segunda foi condenada, após sete anos de trâmite da ação, a pagar a Ana Maria a importância de cinco mil reais.
Tudo isso faz refletir sobre a efetiva reparação dos danos causados a dois cidadãos: Pedro e Ana Maria. Da mesma forma, serve como ponto de reflexão a tal finalidade punitivo-pedagógica da decisão judicial (sentença, na primeira instância; e acórdão, na segunda instância). Como “punir e educar” instituições que faturam anualmente bilhões de reais com indenizações que sequer chegam ao patamar de mil reais por ano em que as ações judiciais correram nas mãos dos funcionários do Poder judiciário.
No caso de João, a coisa tomou uma dimensão de total desrespeito para com um cidadão, podendo-se até falar em agravamento da situação.
Seja munido pelo desejo de se livrar (ou livrar o Poder Judiciário) de mais um processo, pela vontade de “colaborar” para a solução de um conflito, ou seja lá pelo que for, o conciliador deixou de considerar fatos relevantes na promoção da Justiça, como o fato de ser João cobrado pelo consumo de água em sua residência, cujo serviço jamais foi usufruído por ele. João não tinha acesso à água por culpa exclusiva da companhia de abastecimento e, mesmo assim, seu nome foi negativado no cadastro de inadimplentes.
Mesmo diante desses fatos, João ainda teve que pagar parte da dívida por um serviço que jamais teve a chance de usufruir, para, somente depois, ter água em sua residência.
O acordo foi assinado pelas partes, pelo conciliador e, posteriormente, por um juiz de direito (ou, como se chama, juiz togado).
Detalhes: A companhia de abastecimento de água fatura anualmente milhões de reais, por um serviço público. Acompanhai de abastecimento de água teve ciência da ilegalidade de seus atos. João nunca teve acesso à água e, mesmo assim, teve que pagar por ela. João somente estudou até o quarto ano do ensino fundamental. Mesmo tendo ciência dos fatos e das responsabilidades da empresa de abastecimento de água e das incongruências (assim por dizer), o juiz de direito ratificou o que ficou decido na audiência de conciliação. Ou seja, João não usufruía do serviço de abastecimento de água e ainda foi convencido a pagar por isso para que seu nome fosse retirado do cadastro de inadimplentes.
Como e por quê? O juiz achou justo e equitativo os termos do acordo? O mesmo juiz não leu os termos do acordo? O juiz não quis assumir mais um trabalho, com mais um processo, entre tantos outros que aparecem à sua frente, dia após dia?
O curioso é que o fato foi noticiado pela mídia como “mais um conflito resolvido pelo Poder Judiciário no processo de resolução de conflitos com ênfase na conciliação”, portanto, “mais um caso de promoção rápida da Justiça”.
Curioso, não?
Pois é. Tudo isso não passa de uma Justiça por uma “merreca”, quando o cidadão tem que implorar pelo que é seu.
Assim bate-se o martelo no país. Data venia (termo em latim que significa “com a devida licença”, usualmente utilizado nos Tribunais), aos magistrados e conciliadores.

ANTROPOFAGIA


Outro dia, pela manhã, ao sair de casa, me deparei com a seguinte cena: uma senhora idosa caminhava pela calçada quando foi atropelada por um jovem montado numa bicicleta, enquanto trafegava pela calçada, em alta velocidade. Após ser atingida, a senhora idosa foi lançada ao chão, enquanto o jovem rapaz reclamava pelo fato da mesma “não olhar por onde anda”.
Dentre as pessoas que passavam no local, poucas deram atenção ao fato. Tudo parece ter ocorrido numa dimensão paralela ao cotidiano daquelas pessoas.
Eu saia de portaria do prédio onde resido, mas ainda estava na “gaiola” que nos separa da “selva de pedra” e das “criaturas malignas lá de fora”.
Pude ver a cena por completo, até mesmo o comportamento do jovem que andava de bicicleta e que havia atropelado a senhora idosa, enquanto esta caminhava na calçada, diga-se, o devido lugar de pedestres, mas local inapropriado para veículos, inclusive os de duas rodas.
O jovem rapaz veio em minha direção e, olhando-me, atou a sua bicicleta na grade do prédio onde moro com uma corrente. Ficamos nos encarando. Eu com uma postura de reprovação à conduta do jovem e ele me encarando, talvez esperando que eu falasse alguma coisa, para quem sabe, se redimir ou até me agredir, nem que fosse verbalmente, pois sua postura sempre foi a de quem tivesse razão.
Confesso que tive uma vontade de falar algo, mas preferi ver a dinâmica dos fatos, considerando que já havia algumas pessoas ajudando a senhora idosa a se recuperar. Preferi ver a cena, como quem porta uma câmera e filma tudo.
Em primeiro plano, vi o jovem rapaz se comportar de maneira antissocial (como se não bastasse andar de bicicleta em cima da calçada – lugar de pedestres – e de atropelar uma pessoa, sem ao menos se desculpar, ainda por cima utilizou a grade de uma propriedade alheia sem, ao menos, pedir licença). Pude assistir, ao fundo, a senhora se recuperando, com a ajuda de alguns transeuntes solidários, e, mais ao fundo, o ritmo frenético das pessoas, com os automóveis adornando a paisagem naquele instante.
Naquele dia, acordei com um alto astral e havia prometido a mim mesmo que não me indignaria, seja com que coisa fosse, mesmo com um jovem imbecil que se acha com razão, ao transitar com sua bicicleta em cima de uma calçada e, além disso, causar danos a outras pessoas.
Outro dia, vi um jovem dar explicações no sentido de que “a gente anda com a bicicleta na calçada para não se arriscar junto aos carros”.
Tudo bem. Entendi. Ele não pode se arriscar junto aos carros, mas pode arriscar a integridade física de outras pessoas ao transitar com sua bicicleta em cima da calçada. É isso?
Voltando àquele dia, partia eu para a praia, a fim de “tirar o mofo” da semana. Mas, mesmo ante a promessa de não me indignar com as “coisas da vida cotidiana”, o atropelamento da senhora idosa mexeu comigo. Fiquei mais ligado às “coisas da vida cotidiana”.
De minha casa à praia, percorro três quarteirões. Naquele dia, enquanto me dirigia à praia, além de assistir a cena grotesca de um jovem numa bicicleta atropelar uma senhora idosa, enquanto esta andava na calçada, assisti um motoboy (figura urbana que se prolifera como pombo) fazendo o mesmo que o jovem ciclista. Só que desta vez, ao invés de uma bicicleta, era uma moto. E lá se ia o easy rider. Born to be wild!
Pude ainda, no trajeto, ver um carro avançar um sinal fechado, enquanto outro era estacionado por seu motorista em cima da faixa de pedestres.
Ao chegar à praia, coloquei-me em conforto, praticamente à beira do mar, com uma cadeira e uma barraca, enquanto o sol e o mar davam conta da bela paisagem. Sentei-me e fiquei ali, curtindo o sossego, a música em meu fone de ouvido e o jornal com suas notícias.
À beira do mar, pessoas passavam, pra lá e pra cá. Outras pessoas conversavam, liam revistas ou jornais, ou ainda curtiam o sol. Crianças brincavam na beira da água ou na faixa de areia próxima a ela.
Mas, havia um desarranjo à cena paradisíaca. Um grupo de jovens (meninos e meninas) jogavam bola, naquilo que se conhece popularmente como “altinho”.
Assim como transitar de bicicleta ou moto em cima da calçada, avançar um sinal fechado e estacionar veículo em cima da faixa de pedestres, jogar “altinho” à beira mar, pelo menos antes da tarde, nesta cidade, é considerado ilegal. Mas, talvez nem precisasse ser ilegal, pelo risco que representa, basta considerá-lo perigoso. Imagine se a bola acerta uma pessoa e, especialmente, a cabeça de uma criança?
Fiquei ali sentado, na minha cadeira de praia, observando a cena e me lembrei de tudo que havia visto naquele dia, ou seja: um jovem numa bicicleta atropelar uma senhora idosa, enquanto esta caminhava pela calçada; um homem transitando com sua moto em cima da calçada; um carro avançando um sinal fechado; outro carro sendo estacionado em cima da faixa de pedestres etc.
Lembrei-me também de duas pessoas idosas que, semanas antes, de maneira arrogante, reivindicaram prioridade nas filas de cinema e supermercado, respectivamente. Para mim, o fato de exigir direitos não implica em comportamento antissocial ou agressivo, inclusive por idosos.
Mas, pude ainda lembrar-me do jovem Rafael Mascarenhas, de 18 anos, filho da atriz Cissa Guimarães com o músico Raul Mascarenhas, que, ao andar de skate num túnel interditado para manutenção, numa madrugada, foi atropelado por um carro conduzido por outro jovem, Rafael Bussanra, de 25 anos.
As notícias narram conclusões policiais de que naquela madrugada, o veículo guiado por Rafael foi liberado por dois policiais militares que se encontravam próximo ao local do atropelamento, logo após o ocorrido, mediante o pagamento de propina, intermediada pela família de Rafael (vide, por exemplo, Jornal O Globo, de 20/07/2010, caderno Rio).
Diante daquele fato, perguntei-me como poderia uma família acobertar um delito cometido por um jovem, ainda que isso fosse feito “em nome do amor”. Será que acobertar um delito (no caso um homicídio, ainda que culposo, ou seja, sem a intenção de matar alguém) cometido por uma pessoa expressa esse “amor”?
Ora, amor não implica educação para a construção da responsabilidade nos filhos? Amor e impunidade se equivalem?
Pelo foi noticiado, preferiu-se dar uma graninha para que os policiais militares fizessem “vista grossa”.
Há uma série de possíveis motivos para a antropofagia que assola esta “sociedade civilizada”, adoradora de liberdades ilimitadas.
Há que se assumir que qualquer menção à palavra “limitação” ou “restrição”, ainda que mínima de liberdades individuais, em prol da harmonia coletiva, causa um arrepio nas pessoas. Talvez, a “geração reprimida” tenha oferecido “liberdade” demais aos seus pupilos, fazendo com estas mesmas “liberdades” se voltem contra seus beneficiários. Da ditadura à liberação geral. Da repressão à libertinagem.
Tal argumento pode parecer retrógrado, reacionário ou antiquado, uma vez que se desconsiderem fatos históricos e culturais em “sociedade civilizadas”, como a sociedade brasileira.
Ademais, não há como negar contribuições tecnológicas ao processo de socialização na dita pós-modernidade. Redes sociais como Orkut, Facebook, Twitter etc., além de contribuir na comunicação e informação, parecem sintetizar a sociedade narcísica e hedonista, onde o que importa é fama e prazer.
Cultua-se o corpo. Músculos e nádegas representam o novo padrão a ser seguido, adornado por tatuagens que, se outrora remetiam a uma identidade subversiva, atualmente servem de marca de identificação. Mas do que gravar a marca da tribo, talvez se pretenda como nunca marcar a história de cada um. De uma forma de totem a uma espécie de DNA, a afirmação do self.
Pode-se ainda ficar famoso com um pequeno filme no Youtube, por exemplo. Não há mais necessidade de produtor, diretor ou patrocinador. Basta uma câmera ou um aparelho celular na mão e uma ideia na cabeça e pronto: qualquer um pode ficar famoso. O engraçado, o grotesco, o aterrorizante, o erótico... Tudo vale numa “sociedade livre”.
A sociedade do eu e do agora é que vale. Talvez por isso seja mais difícil perceber o outro como sujeito de direitos. A interação com o outro se dá pelo prazer, ainda que virtualmente.
Outro possível motivo que pode ser atribuído as tantas “liberdades” é a escassez de atenção de pais com seus filhos.
Numa sociedade em que se vive uma escravidão pós-moderna, somos empurrados para o trabalho em tempo praticamente integral. Se por um lado, isso se dá pela necessidade de sustento de nossa família, por outro, havemos de reconhecer nosso desejo em sermos reconhecidos por familiares, pelos colegas de trabalho e pela sociedade. Não basta ser um bom profissional, temos que nos sentir (ou fazer com que os outros nos sintam como) “fora de série”, “excelentes” ou “imprescindíveis”. Ninguém que ser transformar (ou ser transformado) em objeto de descarte numa sociedade de consumo.
Ademais, o alto custo de vida, aliado ao medo de ser taxado de vagabundo, mesmo que por um breve momento de ócio, faz com que nos afastemos cada vez mais de nossos lares e de nossos entes.
E, muitos de nós, quando em casa, nos sentimos culpados em oferecer limites aos nossos jovens. “Puxa, passo o dia inteiro fora, trabalhando, e justamente agora que estou com ele, vou reprimi-lo”.
Esquecemo-nos do preceito básico de que “quantidade não é qualidade”. E que umas poucas horas de dedicação podem repercutir melhor do que horas de desprezo e desatenção.
Estes são alguns dos motivos que podem ser atribuídos para que nossos jovens se comportem tão narcisicamente e de maneira egoísta. Afinal, o narcisismo, o egoísmo e o hedonismo foram legados de outras gerações. Mas temos com tanta “liberdade” que sequer sabemos o que fazer de construtivo com ela.
Comportamentos individualistas aqui descritos podem simbolizar máximas como “o que importa é levar vantagem” ou “meu pirão primeiro”, ou ainda diferenciar “malandros e manés” e “corajosos e covardes”.
Diga-se, aliás, que qualquer atitude corajosa pode colocar em risco seu autor. Numa sociedade antropofágica, vence quem é mais forte ou quem possui a arma mais poderosa. Entre bancar o covarde e sair ileso, assim como teria feito Hans Staden, na presença dos índios Tupinambás, no século XVI, e ser corajoso e ter a carne devorada, justamente por isso, prefiro me calar, observar e escrever (capacidade muito além daqueles que enaltecem músculos e nádegas).
Pode parecer covardia, falta de postura ética ou de solidariedade. Contudo, numa sociedade antropofágica, deve-se avaliar todos os riscos de receber um tiro ou uma barra de ferro na cabeça, por uma simples discussão de trânsito.
Essa é a sociedade civilizada, dotada das maravilhas que somente liberdades ilimitadas podem proporcionar.
Que se pague o preço ou incorre-se no risco de ser devorado pelos canibais.

O SUBLIME NÃO SE RELACIONA COM O PATÉTICO


Por Verônica Malkah.


Ao meditar sobre essa frase - “o sublime não se relaciona com o patético”, tomei ciência de minha própria arrogância, da minha relação arrogante com o Sagrado.
O Sagrado não se relaciona com o que seja patético... e como somos patéticos na tentativa de nos relacionarmos com o Sagrado! Como somos medíocres, achando que o Sagrado nos deve a revelação e o esclarecimento de nossas angústias, o afastar de nossas dores e de todo e qualquer sofrimento. O Sagrado nos deve isso?
Achamos que podemos desbravar o Sagrado, penetrar em seus mistérios e que por sermos excelentes desbravadores (afinal, somos eruditos, estudiosos, temos uma boa capacidade de raciocínio), merecemos a recompensa da plenitude, da prosperidade, da sabedoria infinita, do final feliz para sempre.
O Sagrado não nos deve nada, o sublime não se aproxima da barganha, da chantagem, das falsas adorações e rezas.
Somos tão arrogantes espiritualmente que afastamos nossos próprios corpos da idéia de desenvolvimento, achando que apenas o intelecto nos abrirá as portas do paraíso.
Nos contentamos em “intelectualizar” sobre a vida e nos esquecemos que viver é correr riscos, é se abrir para o desconhecido, para aquilo que não controlamos, não sabemos, não prevemos. E, para anestesiar o medo infantil e imaturo da morte (pois para nós, o risco de nos abrirmos e sofrermos se equivale a morrer) nos dedicamos única e exclusivamente a sobreviver. E ainda exigimos que o Sagrado nos conceda uma sobrevivência próspera, com conforto, pouco trabalho e muito prazer...
Quem restringiu a relação com o Sagrado a essas míseras barganhas?
Se não estamos vivendo de acordo com as nossas vontades pessoais então nos lembramos do Sagrado e passamos a nos dedicar a uma pseudo espiritualidade: vamos às missas, rezamos, oramos, meditamos, compramos livros e talismãs, nos inscrevemos em cursos e palestras de gurus e mestres, dizemos ao universo o quanto desejamos a conexão com o Sagrado, quando na verdade desejamos apenas satisfazer nossas vontades pessoais.
Será que continuaríamos indo às missas, aos templos, às palestras, às rezas se soubéssemos que nada disso é garantia de afastarmos a dor e o sofrimento? Será que seríamos fiéis em nossa conduta espiritual se, de fato, percebêssemos que a despeito de toda essa dedicação o Sagrado continuaria a não nos dever nada?
Será que realmente sabemos o que é o Sublime ou nos relacionamos apenas com uma fantasia irreal sobre um ente que nos concede recompensas ou punições?
Se não houver uma profunda reflexão sobre essas questões e um grande esforço em identificar a forma contemporânea (rasa e superficial) de se aproximar do Sagrado, não conseguiremos eliminar os resíduos internos que nos impedem de saborear uma gloriosa experiência significativa (que não se confunde com uma experiência prazerosa ou de acordo com as nossas vontades).

segunda-feira, 5 de julho de 2010

FUTEBOL NÃO É SÓ UM JOGO.


No dia 2 de julho de 2010, a seleção brasileira de futebol foi derrotada pela equipe holandesa, por 2 a 1, de virada, ficando de fora da luta pelo título da Copa do Mundo, realizada na África do Sul.
Não tardaria muito para que, logo após a partida válida pelas quartas-de-final da Copa do Mundo, críticas surgissem tanto da imprensa como por parte do público, remetendo a premissa que “o importante é ganhar”, ainda que uma equipe de futebol não consiga desenvolver o jogo mais bonito entre as quatro linhas.
São raras as experiências de seleções de futebol que, mesmo eliminadas das Copas do Mundo, conseguiram um lugar de honra no meio aos derrotados. A Hungria de 1954, a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982 sintetizam o brilho de equipes que conseguiram, mesmo não vencendo a Copa do Mundo, um lugar honroso na história.
Mas, no caso brasileiro, gera dúvida a preferência pelas seleções das Copas do Mundo de 1982, que não venceu a referida competição, e a seleção de 1994, por exemplo. Futebol bonito ou de resultado, o que vale mais? A dúvida ainda persiste.
Argentinos, uruguaios, alemães, italianos, franceses e ingleses naturalmente também tem suas dúvidas quanto às seleções e no tocante à eficiência ou beleza do futebol jogado por suas respectivas seleções. A seleção argentina “perdedora” de 1994 jogava um futebol mais bonito que a campeã de 1978? A seleção italiana de 1970, mesmo tendo sucumbido ante o time brasileiro daquele ano, jogava melhor do que a campeã de 1982? E a seleção francesa de 1982 foi melhor do que a de 1998?
É claro que, quando há a conquista de um título mundial em jogo e a contribuição de craques como Maradona, Paolo Rossi e Zidane no intento, um peso maior se dá a seleção de futebol em questão.
Por falar em craques, existe a disputa entre os povos de quem teria sido o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Pelé ou Maradona?
E até mesmo no plano doméstico este dilema persiste. Entre os franceses, por exemplo, reina a dúvida de quem teria sido o maior jogador daquele país. Platini ou Zidane?
Se o que importa é resultado, Zidane parece possuir uma vantagem, ainda que ligeira, sobre Platini.
A disputa entre Pelé e Maradona ao título de Deus do futebol (vale até lembrar que o segundo inclusive possui adeptos em uma igreja – a Igreja Maradoniana), trata de colocar outros grandes craques, tais como Beckenbauer, Bobby Charlton, Bobby Moore, Cruyff, Puskas, Di Stefano, Eusébio, Garrincha, Roberto Baggio, Platini, Zidane, Zico etc., senão na berlinda, num patamar inferior, de "semideuses" ou, quiçá, de "simples mortais".
Mas, voltando à eliminação da equipe brasileira da Copa do Mundo de 2010, uma coisa chamou a atenção: o fato de alguns meios de comunicação, jornalistas e até mesmo parte do público se utilizar de um eufemismo para aliviar o sentimento de decepção ou dor pela eliminação da equipe canarinho da competição em tela.
A expressão “é só um jogo de futebol” como uma espécie de analgésico para aplacar a dor ou a fúria dos torcedores brasileiros pela eliminação de sua seleção foi dita na televisão por várias vezes e escrita em jornais.
No caso argentino, por exemplo, parte da imprensa local foi menos condescendente, cabendo ao público o acaloramento de sua seleção, mesmo com uma derrota acachapante para a equipe alemã. Uma derrota de 4 a 0.
Tudo bem. Pode-se crer que a eliminação de uma seleção nacional de futebol de uma Copa do Mundo não mereça ser tratada como um (quase) crime, assim como fizeram com as seleções brasileiras de 1974 e 1990, as italianas de 1966, 2002 e 2010, e as francesas de 2002 e 2010. Isso, sem deixar de mencionar a seleção nigeriana, punida pelo governo pela eliminação da Copa do Mundo de 2010, e equipe do Zaire de 1974. Zaire, aliás, que sequer existe mais, tendo sido substituído na ordem mundial pela República Democrática do Congo.
Mas, cabe licença àqueles que acreditam que “é só um jogo”. Trata-se de muito mais do que somente um “jogo”.
O futebol é uma (quase) religião, conforme já foi reconhecido pela Intelligentsia (academia, imprensa, intelectuais e políticos) e pelo público em geral. Há até quem diga se tratar de um “ópio do povo”.
Se Maquiavel conhecesse o futebol e seu impacto na mente coletiva, muito provavelmente teria recomendado o esporte à política do conquistador virtuoso. Panis et circensis a plebe. Foi assim que governos ditatoriais exploraram o esporte. Quem pode se esquecer, por exemplo, do sorriso do general Jorge Videla ao entregar o troféu FIFA a Daniel Passarella, capitão da seleção argentina, logo após a vitória na partida final contra a Holanda, em 1978.
E os campeonatos nacionais também servem a este propósito. No Brasil, por exemplo, o campeonato nacional de futebol com um número excessivo de clubes foi a tônica da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e, depois, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para “agradar” geral e manter as mentes e corações ocupados, entorpecidos. Isso somente mudou com a redemocratização do país e com a rebeldia do chamado Clube dos Treze, em 1987.
O futebol é mágico e trágico, ainda mais quando disputado para e em uma Copa do Mundo.
Como esquecer o conflito fora e dentro de campo que envolveu El Salvador e Honduras, em 1969, por ocasião da disputa por fronteira e por uma vaga na Copa do Mundo do México, no ano seguinte? A Guerra do Futebol (Football War) entrou para a história.
Como esquecer a “divisão de águas” promovida pela seleção brasileira de Pelé, Gérson, Tostão, Jairzinho, Carlos Alberto Torres, Rivelino e cia., campeã da Copa do Mundo de 1970? Mas, consideram-se também as contribuições das seleções da Holanda 1974 e da Itália de 1982, para o bem e o mal do “futebol arte”.
Como esquecer as “zebras” galopando pelos gramados, ou, recorrendo-se à metáfora religiosa, numa reconstrução da contenda entre David e Golias? Coreia do Norte 2 x Itália 1 (1966), Espanha 1 x Honduras 1 (1982), Argélia 2 x Alemanha Ocidental 1 (1982) e Camarões 1 x Argentina 0 (1990) são alguns exemplos bíblicos do futebol nas Copas do Mundo.
Como esquecer as disputas entre los hermanos sudamericanos Brasil e Argentina, em 1974, 1978 e 1990?
Como não lembrar a importância da vitória da seleção argentina de Maradona sobre o English Team de 1986, considerando que os dois países travaram um conflito bélico pela posse da Ilhas Malvinas ou Falklands? Maradona fez com a zaga inglesa aquilo que os Harriers da Rainha Mãe, ou por que não dizer de Margareth Tatcher (A Dama de Ferro), fizeram com a Armada argentina em 1982.
Da mesma sorte, não se pode esquecer partidas como aquela realizada em 1974, entre Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental, que terminou com a vitória da segunda por 1 a zero. Guerra Fria!
As "duas Alemanhas" somente se reunificariam em novembro de 1989, após a queda do Muro de Berlim.
E que dizer de embates épicos, como Alemanha Ocidental x Hungria (1954), Inglaterra x Alemanha Ocidental (1966), Brasil x Inglaterra (1970), Alemanha Ocidental x Holanda (1970), Brasil x Itália (1982) e Alemanha Ocidental x França (1982), entre outros. Guerra entre Deuses!
A magia do futebol se manifesta, especialmente numa Copa do Mundo, quando acontece um duelo entre (semi) deuses. Pelé x Bobby Moore, Cruyff x Beckenbauer etc.
É o futebol que exprime o holocausto e a catarse do público, num alívio coletivo de milhões de pessoas, graças às vítimas sacrificiais. Bodes expiatórios e cordeiros imolados para aplacar a fúria dos Deuses!
O futebol também permite o ressurgimento das cinzas de figuras dionisíacas como Ronaldo, “morto” desde a véspera da partida final contra a França, em 1998, e “ressuscitado” na Copa do Mundo de 2002. Favorece a ascensão de entes ao Olimpo, como Pelé e Maradona, ou a ida ao inferno, como aconteceu com o goleiro brasileiro Barbosa, após a derrota do selecionado brasileiro para a equipe uruguaia (a celeste olímpica), na final da Copa do Mundo de 1950, num fenômeno conhecido como Maracanaço (a tragédia do Maracanã que silenciou aproximadamente 200 mil pessoas), e, recentemente, com o meiocampista Felipe Melo, expulso nas partidas contra Portugal e Holanda, na Copa de 2010.
E, além disso tudo, o futebol permite a comunhão orgânica e religiosa entre os homens, para além dos moldes contratualistas da modernidade e de padrões mecânicos e burocráticos. Vê-se isso nas peladas nos campos de areia, barro, cimento ou grama, nos jogos de botão e nas trocas de figurinhas. Figurinhas, compartilhadas por meninos e meninas, homens e mulheres, como verdadeiras hóstias dominicais.
Com a devida licença àqueles que acham que tratar-se de “só um jogo”. Mas, é muito mais do que isso. O futebol sintetiza o sagrado e o profano, o tribal e o hedonista, o solidário e o egoísta.
O futebol revela a essência humana; o homem tomado em sua complexidade. Reconhece-se, pois, o homo erectus, homo faber, homo habilis, homo regilious, homo æestheticus, homo æconomicus, homo politicus, homo sapiens e o homo futebolensis.
Portanto, perdoem-me, mas futebol é muito mais do que “só um jogo”.

sábado, 10 de abril de 2010

A FILA



Neste fim de semana, minha mulher, Anita, e eu estávamos em uma fila, no interior de um cinema localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, para assistir ao filme O Segredo de Seus Olhos (El Secreto de Tus Ojos), de Juan José Campanella.
Chegamos cedo ao cinema, compramos nossos ingressos e fomos a uma livraria no interior do próprio cinema. Se tivéssemos chegado ao cinema uns dez minutos mais tarde, provavelmente, não conseguiríamos adquirir os ingressos para o filme em tela.
Uma vez na fila, podemos observar o comportamento de pessoas próximas, como conversas alegres, aparições de personalidades cinematográficas (as quais compareceram para o lançamento de um outro filme) e pessoas pra lá e pra cá no saguão do cinema. Tivemos também a chance de presenciar alguns fatos curiosos, senão, lamentáveis ou que merecem reflexões.
Vimos pessoas reclamando do fato de, num sábado à tarde, num dia chuvoso, o cinema estar lotado. “A gente sai de casa, num sábado, esperando assistir a um filme tranquilamente, e se depara com um cinema lotado!” Um estresse, ao nosso sentir, desnecessário para quem se propõe a um lazer numa cidade grande.
Enquanto estávamos na fila, aguardando para ingressar na sala de projeções, uma mulher, aparentando uns quarenta e tanto ou cinqüenta anos de idade, tentou se colocar à nossa frente, naquilo que popularmente se chama “furar a fila”.
Percebemos que ela fez aquilo dissimuladamente, a fim de que não percebêssemos, mesmo que as poltronas fossem marcadas para cada espectador.
De uma maneira muito delicada, minha mulher informou a referida mulher que nós também estávamos na fila, aguardando nossa vez de entrar na sala, e que o fim da fila ficava um pouco mais atrás de nós.
Não sei se surpresa com a informação ou tentando bancar a esperta, a mulher ainda argumentou que “ela estava na fila, mas que havia ido falar com uns dos funcionários do cinema, com o intuito de saber qual era a sala em que passaria o filme O Segredo de Seus Olhos.
Minha mulher a explicou, ainda de maneira gentil, que nós também tínhamos falado com os tais funcionários do cinema, a fim de saber a resposta a mesma pergunta que a dela.
O detalhe é que, enquanto eu falava com um dos funcionários, minha mulher guardava meu lugar na fila, ao seu lado, para assistirmos ao filme. E a tal mulher sequer estiveram na fila anteriormente, como alegara.
Ou seja, além de “furar a fila”, a mencionada mulher tentou “se dar bem”, às nossas custas, ou aproveitar-se de nossa "ingenuidade".
Mas isso não foi tudo, pois quando a sala de projeções foi aberta para quem aguardavaa na fila, uma outra mulher, de cabelos grisalhos, passou bem a nossa frente, a toda velocidade (no exato momento em que estávamos prestes a apresentar nossos bilhetes), entregou seu bilhete a uma funcionário do cinema e, se falar uma palavra sequer, partiu rumo a seu assento.
Algumas pessoas podem até dizer: “Poxa, como esse casal esquenta a cabeça com bobagens!”No entanto, cabe esclarecer que em nenhum momento comportamento-nos de modo agressivo, por mais que tenhamos nos sentido ofendidos.
Mas, ofendidos por quê?
Conversamos (minha mulher e eu) e chegamos a algumas conclusões, entre elas, as seguintes:
A tentativa da “furar a fila” por parte da primeira mulher e a efetiva “furada de fila” por parte de outra nos remeteram à percepção de como as pessoas manifestam um comportamento hedonista (uma espécie de culto ao “eu”). Trata-se, pois, ainda que de uma maneira inconsciente, de dizer (numa linguagem não-verbal) que as outras pessoas não existem, na melhor das hipóteses.
Numa hipótese diversa, pode significar “eu sou mais importante que você, por isso, mesmo tendo chegado depois, vou passar a sua frente e que se dane”.
Isso, sem deixar de mencionar que os comportamentos das duas mulheres nos fizeram refletir para o fato de que, mesmo nos momentos de lazer, estamos correndo (ainda que não saibamos por quê ou pra que).
No caso da mulher de cabelos grisalhos, poder-se-ia considerar a prioridade de atendimento, uma vez que a mesma possuísse mais de sessenta anos de idade. Trata-se de um direito subjetivo dela e de um dever legal e ético da sociedade, nclusive nós.
Entretanto, ainda assim, pode-se crer que a distinta senhora dispensou uma oportunidade para demonstrar para a sociedade (a qual faz parte) que sua (talvez mísera)vida lhe valeu de aprendizagens valiosas, como o respeito aos outros, ainda que se exerça um direito.
Não se trata de mesquinhez ou sentimento de superioridade nossa, mas, cremos que dizer “com licença”, “por gentileza”, “por favor” e “obrigado” constituem manifestações nobres de se exercer um direito subjetivo e que, em nada enfraquece o exercício de tal direito ou diminuem uma pessoa perante as outras.
Fala-se muito sobre a “falta de educação dos jovens”, que seriam ainda “hedonistas”, “narcisistas” ou “presenteístas”. Mas, pelo que pudemos ver no cinema, neste fim de semana, nossas “pessoas maduras”, “velhas”, da “terceira idade” ou da “melhor idade”, como se quiser falar, não conseguiram ser mais “educadas”, “civilizadas” ou “socializadas” do que nossos jovens. Talvez tenham perdido várias chances, ao longo de suas respectivas vidas, de aprender e exercitar sentimentos valiosos para os seres humanos, tais como o respeito e a percepção do outro.Que pena.
Há ainda a questão da sustentabilidade da democracia, considerando a manutenção da ordem, eis que a premissa é simples: “quem chega primeiro, merece ser atendido primeiro”, ainda que se considerem as prioridades de atendimento a idosos, gestantes, mulheres com crianças de colo ou portadores de necessidades especiais ou deficientes físicos, como o linguajar “politicamente correto” prefira.
A permanência ou não numa fila – seja ela, em um estacionamento, banco, mercado ou cinema – pode refletir nosso modo de encarar a vida e os outros.
Existem, pois, valores subliminares, mas essenciais numa fila, muito mais do que um simples ordenamento de pessoas.
Em nenhum momento, procuramos brigar com as duas mulheres aqui aludidas, mas os seus comportamentos nos serviram de reflexão e a conclusão de que vamos continuar a respeitar as filas.
Afinal, sem sermos piegas, somos defensores da democracia, da cidadania e acreditamos que a delicadeza e o respeito ao outro só nos faz estar em comunhão com as outras pessoas. É o nosso religare.
É nossa maneira de ser feliz e de “amar ao outro como a nós mesmos”.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O NAMORO ENTRE O SOL E A TERRA.


Da escuridão se fez a luz.
Do silêncio se fez o som.
Da quietude do universo se fez a vida.
Assim, fizeram-se o Sol e a Terra.
Ao Sol coube cuidar da Terra, mantendo-a aquecida com a energia de sua luz.
Deveria assim o Sol ser vigilante para com a Terra, para sempre.
A Terra coube ficar sempre próxima ao Sol, cercando-o em sua órbita.
Dia e noite, Sol e Terra se enamoram.
Enquanto o Sol cuida da Terra com a energia e o carinho de sua luz, a Terra baila ao redor do Sol, cortejando-o como a amada que se mostra graciosamente ao namorado.
Para enaltecer o amor entre o Sol e a Terra, criaram-se as estrelas.
E desse amor nasceu a Lua que gira em torno da Terra, como um filho que fica próximo a sua mãe.
Apesar de não se tocarem, Sol e Terra sabem que sempre estarão ali, bem juntos, um e outro, eternamente, na infinitude do leito do universo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O BAILE


Noite de sábado, pista cheia de uma casa na Lapa, Rio de Janeiro. No escuro, corpos se agitam, com a música eletrônica no fundo. Techno, Hip-Hop e Funk agitam a noite.
O DJ capricha no repertório que embriaga as pessoas, juntamente com bebidas e cigarros. Bebe-se de tudo. Fuma-se de tudo.
Os deuses só são alcançados mediante a embriaguez.
Na penumbra, homens e mulheres dançam e se comungam em gestos eróticos. Tudo fica à flor da pele.
Contratos sociais e convencionais dão lugar a contratos afetivos, efêmeros, líquidos.
Nada se combina. As coisas acontecem espontaneamente. Pra que falar se o que impera é a orgia. Um constante (re)arranjo se faz durante toda a noite. A dança e a circulação pela pista possibilitam encontros. Olhares, beijos e toques são os cartões de visita.
Todas as pessoas querem ver e ser vistas.
A vida pulsa, coletivamente. Mesmo quem tenta se conter, é irresistivelmente acolhido pela massa. Ninguém é de ninguém, e todo mundo é de todo mundo.
Os seguranças da casa se fazem presentes para manter a ordem, reconhecendo que vigora a desordem, ou, uma nova ordem. A ordem da vida que se liberta das amarras do cotidiano.
Aliás, não importa a idade, o sexo, a formação cultural ou a profissão. Nada serve para apartar. Tudo une.
Cada pessoa coloca sua máscara. Os mitos da racionalidade, da labuta e da morte sedem lugar aos deuses do inconsciente, da orgia, da festa, da alegria e da vida.
Deixa rolar. Esse é o tema da noite.
Viva a vida, ainda que seja somente no presente. Não se quer ser eterno, mas sim infinito. O agora se propaga no tempo. Pra que pensar no futuro. Who wants to live forever?
Deixa rolar.
A noite termina onde se quiser. Ali mesmo, naquela casa; num motel; na praia; pela cidade. Sabe-se lá
Deixa rolar.
Até lá, aproveite o baile e...
Deixa rolar.

O MENINO E O VALE


Bachir estava sentado num bloco de pedra, em frente à casa em que habitava com seus pais e irmãos. O chão de terra arenosa lhe servia de palco para sua imaginação. Nele, com um pequeno graveto, tecia retas e curvas, fazendo desenhos que iam do retrato de sua realidade até suas imaginações que planavam sobre sua cabeça como as aves que apareciam no céu azul.
Bachir era um menino como outros que vivam naquela vila encravada no meio de um vale cercado por montanhas áridas, formadas por pedras e algumas plantas que ousavam resistir às condições climáticas adversas. Casas de barro e tijolos envelhecidos serviam como marca da resistência humana num cenário desolador. Era uma vila pobre, com pessoas visivelmente humildes, em sua maioria, velhos. Crianças naquela vila eram muito poucas.
A subsistência dos habitantes da vila era garantida graças à atividade agrícola e à criação de alguns animais, como porcos e galinhas. Água naquela região era um recurso escasso. Só havia um poço para abastecer toda população local.
O interessante é que ninguém se aventurava a sair da vila, ou, pelo menos, ninguém que se tivesse notícia recente, pois conta-se que uma única pessoa havia partido há muito tempo e que ninguém soubesse mais dela.
Circulava entre os habitantes daquela vila uma lenda de que a pessoa que há muito havia partido se perdeu nos confins do mundo. Para eles, a vila representava uma espécie de centro do universo; tudo que estivesse fora dela e, portanto, além do alcance da visão de seus moradores, era considerado como perdido e fadado à desgraça.
Bachir cresceu e percebeu que seus pensamentos extrapolavam os limites daquela vila. O vôo das aves lhe dava a sensação de infinitude do universo frente às limitações daquela pequena comunidade. Olhava para o topo das montanhas que cercavam a vila e se perguntava se realmente não haveria nada além delas.
Bachir se perguntava se as pobres condições da vila onde morava se repetiriam além dos limites estabelecidos pelas montanhas. Via as aves e as nuvens atravessarem as montanhas. As idas e vindas das aves, numa liberdade invejável, começaram a lhe chamar a atenção.
Quando já tinha uma idade mais avançada e, segundo a cultura popular da vila, em plenas condições de se tornar independente de seus pais e até se casar, Bachir sentiu-se tocado pela vontade de quebrar certas tradições, sendo uma delas, a recomendação de não subir as montanhas para ver o que haveria além delas.
Para o povo local, a recomendação de partir para o topo das montanhas assumia uma condição divina, o que, na prática, se revelava como uma espécie de proibição. A simples menção a possibilidade de cruzar as montanhas era encarada pelas pessoas daquela vila como um tabú. Se o Criador havia confinado a população a viver naquele espaço físico limitado, mas em segurança, não caberia aos homens a ousadia de quebrar tal preceito. O castigo seria a perda no deserto e, conseqüentemente, morte por sede e fome.
Na mesma proporção que Bachir se entregava à necessidade de se aventurar pelas montanhas, sentia temor de que as lendas dos habitantes da vila se concretizassem. A vontade de imitar as aves ia de encontro ao medo da perdição e morte.
Certa noite, quando as atividades na vila haviam cessado até a manhã seguinte, Bachir resolveu testar sua coragem. Saiu de casa com uma bolsa contendo pão e água. Partiu por uma das montanhas que cercavam a vila, tomando cuidado para que não fosse visto.
Começou sua caminhada com um misto de euforia e medo. Quando já tinha percorrido uma boa distância, percebeu que a caminhada até o topo da montanha seria árdua. Além das condições inóspitas da montanha em questão, sua altura servia para intimidar qualquer um que por ela se aventurasse.
A temperatura caía muito ao anoitecer, revelando uma variação térmica de extremo contraste com as altas temperaturas dos dias.
Naquela noite, o medo foi maior do que a sede de ver o novo, fazendo com que Bachir retornasse para sua casa. Por mais duras que fossem as condições de vida na vila, pelo menos havia um sentimento de que nela estaria a única garantia de segurança física de seus habitantes, inclusive do jovem aventureiro.
O dia raiou e o menino voltou a olhar fixamente para as montanhas. Em sua mente havia uma mistura de segurança e covardia. Ficou angustiado e confuso.
Via as aves num vôo sem limites. Elas planavam, aproveitando as correntes de ar que atravessavam o vale. Ao fundo, as nuvens se moviam lentamente, surgindo por cima de umas montanhas, atravessando o vale e fugindo pelas montanhas do lado oposto.
Tal visão serviu para acentuar o sentimento de angústia em Bachir. Passou a noite em claro, virando e revirando em sua cama, iluminado pela lua cheia que se sustentava no céu.
No dia seguinte, se levantou cedo, como era de costume naquela vila, eis que havia obrigações a serem cumpridas. Mesmo assim, as tarefas desempenhadas durante aquele dia em nada distraíram a sua mente. Afinal, as montanhas estavam lá para lembrar-lhe da dúvida que habitava sua cabeça – ficar na segurança da humilde vila ou partir rumo ao desconhecido.
O dia passou. A noite caía e Bachir continuava olhando pela janela o topo das montanhas.
Aquilo se repetiu por várias vezes, chamando inclusive a atenção da mãe do menino. Quando não estava ocupado com os afazeres, Bachir permanecia com sua atenção voltada para os cumes das montanhas.
Com a intuição materna, aquela mulher percebia a vontade de seu filho. E, se por um lado desejava interromper qualquer possibilidade de aventura de seu filho, por outro, sentia que a hora da partida se aproximava. E essa hora havia chegado
Um dia, antes que a vila despertasse, Bachir partiu. Em sua pequena sacola, presa às costas, levava aquilo que supunha ser necessário para sua sobrevivência, pelo menos, para alguns dias.
Além da sacola, levava consigo um sentimento de despedida. Antes de sair de casa, deu uma última olhada em seus pais, que ainda permaneciam na cama, já que o dia não havia se firmado.
Bachir viu o reflexo do amanhecer no rosto de sua mãe. Percebeu a marca do tempo nas rugas do rosto e nas mãos da mulher que ali dormia. Não era uma mulher velha, mas que, devido à intensa carga de trabalho ao longo dos anos, havia envelhecido rapidamente.
Pela última vez, o menino viu seu pai e sua mãe, tomando todas as cautelas para que não fosse percebido. Não sabia ele que sua mãe o havia percebido ali bem em frente à porta do quarto do casal, a qual se encontrava entreaberta. Não percebia que aquela mulher havia optado por deixá-lo partir, mesmo considerando o temor de mãe.
Enfim, Bachir deixou a casa, partindo rumo às montanhas que aguardavam há muito a sua decisão.
Nas primeiras horas, a subida foi fácil. Mas, com o correr do tempo e o desgaste físico, a caminhada ficava cada vez mais difícil, levando o menino a pensar novamente se não seria melhor retornar para casa, como tinha feito em outra tentativa.
Parou e olhou par trás. Viu a humilde vila onde havia residido, notando que o que até então parecia grande não passava de um ponto na imensidão do vale.
Mas dessa vez, determinado em se deparar com o desconhecido, o outro lado das montanhas, Bachir prosseguiu. Levou um dia e uma noite inteira para chegar ao topo de uma das montanhas que o desafiava, até que no dia seguinte conseguisse chegar lá.
Tendo chegado ao topo de uma das montanhas, Bachir se deparou com uma paisagem muito diferente daquela a que estava habituado. Ao contrário de uma pequena vila no meio de um vale como solo árido, desta vez podia ver as riquezas naturais que se espalhavam bem a sua frente. A exuberância de uma extensa planície verde tomava conta do cenário que estava bem ali à frente do menino.
De início, foi tomado pela emoção, ao ver a paisagem mais rica que tinha visto em sua vida. Nunca tinha visto tanta riqueza, já que os extensos campos verdes e as fontes de água contrastavam como aquela paisagem árida do vale onde havia habitado.
Mas a emoção foi abalada pelas lembranças e pelo temor de seguir adiante. Como seguir em frente, rumo a lugares desconhecidos? Será que valeria a pena aceitar o desafio em troca de uma vida modesta mais segura?
A essa altura, Bachir já havia caminhado bastante para olhar para trás e rever a vila onde havia passado sua vida.
E foi naquele momento que decidiu seguir em frente. Se dispos a carregar consigo somente as lembranças do lugar onde viveu até então e das pessoas com quem conviveu.
Foi ali que sentiu que era o momento de ruptura, de busca pelo novo, de amplitude de concepção do sentido de sua própria existência. Pela primeira vez, compreendeu que viver a vida implica correr riscos.
E assim, Bachir partiu rumo ao desconhecido e à imensidão de possibilidades que a vida lhe reservara, diante do cenário que estava ali bem a sua vista e com a coragem de seguir em frente. E partiu.

O OUTRO


Num dia de sol radiante e céu azul, com nuvens esparsas e volumosas como chumaços de algodão alvos, o campo de trigo parecia um grande tapete dourado que se mexia ao leve toque da brisa. Em meio ao campo de trigo, Baruch cuidava de ramo por ramo, num zelo que revelava seu carinho para com a terra, herdada de seu pai, Abiel, por ocasião de seu falecimento. Além do cultivo de trigo, Baruch de dedicava a criação de galinhas e ovelhas.
Assim como Baruch, Faruk também cultivava trigo e criava animais. Faruk era irmão de Baruch por parte de pai. Abiel havia se relacionado com Ada e Aminah, as quais geraram Baruch e Faruk, respectivamente.
Com a morte de Abiel, Baruch e Faruk herdaram, cada um, uma metade da terra. Mesmo com o pai em comum, Baruch e Faruk nunca fizeram questão de manter uma boa relação. Pelo contrário, com a morte de Abiel, a discórdia entre os irmãos parecia crescer a cada dia, ao ponto de Baruch e Faruk selarem um pacto de ódio mútuo. E, em decorrência deste pacto, um irmão não se proporia a facilitar a vida para o outro.
A terra que outrora pertencera a Abiel foi dividida em duas partes iguais. Baruch ficou com uma metade e Faruk com a outra. Ambos faziam questão de deixar bem claro que na primeira oportunidade, buscariam forçar a saída do outro de sua parte da terra, com o intuito de unificar as porções, como nas dimensões originais.
Cada um dos irmãos habitava a terra com sua respectiva família. Baruch era casado com Miriam e tivera com ela dois filhos chamados Dedan e Elam. Já Faruk era casado como Salma, tendo Safira e Emir como filhos deste casal.
Tanto Baruch como Faruk se dedicavam quase que exclusivamente às plantações de trigo e criações de galinhas e ovelhas. Enquanto isso, Miriam e Salma tratavam de cuidar dos afazeres domésticos e da educação de seus filhos, dando prosseguimento à tradição de suas famílias.
Por parte de Baruch, Elam ajudava seu pai no cultivo da terra e na criação dos animais, em boa parte do dia. Nas manhãs, Elam estudava numa escola localizada numa cidade próxima. Dedan havia partido para estudar numa escola religiosa longe da terra de seu pai, o que para Baruch significava motivo de orgulho.
Emir e Safira também estudavam numa escola na mesma cidade em que Elam freqüentava outra instituição de ensino.
Apesar do pacto de ódio entre os irmãos, sua convivência se baseava na indiferença, até o dia em que algumas galinhas pertencentes a Faruk pularam a cerca rumo à propriedade de Baruch. Mesmo diante dos pedidos de Faruk, Baruch negou-se a devolver as galinhas que atravessaram a cerca que dividia as duas propriedades.
Para Baruch, as galinhas lhe pertenciam, pois haviam pulado o muro para dentro de sua propriedade, o que demonstrava que não foram roubadas. Tal afirmação irritou Faruk que, entendendo que a apropriação das galinhas por parte de Baruch significava um roubo, jurou vingança.
O tempo passou, enquanto a promessa de Faruk parecia ficar esquecida. A rotina dos irmãos, dedicada ao cultivo do campo e à criação de animais contribuía para que determinados sentimentos, como ódio e sede de vingança, fossem deixados de lado.
Mesmo fazendo questão de frisar que seus valores e culturas eram tão diferentes, ambos os irmãos e suas famílias levavam uma vida parecida. As atividades eram exercidas normalmente pelas duas famílias, de domingo à sexta-feira, quando, ao anoitecer deste dia, se dedicavam às tradições deixadas pelo patriarca Abiel. O cuidado especial com a higiene e a vestimenta marcavam, além das orações, as noites de sexta-feira.
Aos sábados, ambas as famílias não trabalhavam, em respeito às tradições familiares. Os afazeres normais à vida no campo somente eram retomadas no amanhecer de domingo.
Baruch e Faruk comercializavam ovelhas, galinhas, ovos e trigo com os moradores da cidade próxima, a mesma em que Elam, Emir e Safira estudavam. Mesmo diante da idéia de que o comércio desenvolvido pelos irmãos Baruch e Faruk significava uma concorrência direta, na prática, esta não se concretizava. Isto porque toda a produção de Baruch e Faruk servia para abastecer integralmente as casas e comércio da tal cidade.
A má relação entre Baruch e Faruk servia de assunto para as conversas na cidade. Considerando que a cidade era pequena e que todas as pessoas se conheciam, qualquer incidente não passaria despercebido.
Havia na cidade três grupos de pessoas. Um dos grupos simpatizava com a família de Baruch e somente adquiria os frutos de sua terra, enquanto outro grupo só comprava os produtos de Faruk.
Parecia que a desavença entre os irmãos chegava à vida dos habitantes da cidade, ainda que de maneira velada e não tão intensa como àqueles. Mas, ainda assim, tinha gente que dizia que somente comprava os bens vindos das terras de Baruch, eis que “este seria este o herdeiro legítimo de Abiel”. Para outros, por ser primogênito, Faruk seria o “verdadeiro herdeiro das terras de Abiel”.
Além dos dois grupos de simpatizantes, existia um terceiro grupo, mais volumoso e, que, sem se deixar levar pelo conflito entre os dois irmãos, dava pouca importância à origem dos produtos e das crias. Este grupo estava muito mais interessado em satisfazer suas necessidades, considerando os melhores preços oferecidos, do que se entregar ao conflito.
Junto a este último grupo, a concorrência entre Baruch e Faruk era acirrada. Os dois irmãos travam uma verdadeira corrida para ver quem chegava primeiro a cidade. A concorrência entre Baruch e Faruk tinha um fim maior do que o comercial; tratava-se de um jogo em que o objetivo era a ruína do outro.
Um dia, chegou aos ouvidos de Baruch que seu filho Elam estaria mantendo um suposto romance com Safira, filha de Faruk, o que para ele era inconcebível.
Elam e Safira pareciam não ligar para as desavenças de seus pais. Afinal, não conseguiam entender como dois irmãos de sangue, por parte de pai, faziam questão de se manter distantes. Mas, a distância que separava ambos os irmãos também fazia parte das tradições que envolviam ambas as famílias.
A aproximação entre Elam e Safira significava uma violação a tais tradições e, portanto, uma traição aos preceitos que eram tidos como inquestionáveis e invioláveis.
Por parte de Faruk, a aproximação entre Elam e Safira, sua filha, também não lhe agradava. Ele chegou, inclusive, a ameaçar Safira com a proibição de sair de casa.
A situação tomou uma dimensão que nem Miriam e Salma foram poupadas. Para seus maridos, estas seriam culpadas pelo suposto desleixo na educação de seus filhos.
O relacionamento entre Elam e Safira tinha um preço. A reprovação de seus pais, suas mães e seus irmãos era algo que não poderia ficar de lado. Tanto Baruch quanto Faruk haviam ameaçado Elam e Safira, respectivamente, com a possibilidade de deserdação, o que para os costumes locais era uma desgraça.
O conflito entre as duas famílias, devido ao relacionamento entre Elam e Safira, chegou ao clímax quando Emir interveio pela honra de sua família. Elam e Emir brigaram em pleno centro da cidade, na presença de inúmeras pessoas. Além dos hematomas e feridas nos corpos de ambos os rapazes, a briga parecia ter deixado marcas mais profundas no filho de Baruch e em Safira.
Elam e Safira perceberam que o preço a ser pago pelo romance era muito alto e que, portanto, não valia à pena continuar com aquele relacionamento. A separação do jovem casal serviu para mostrar a incompatibilidade entre as famílias de Baruch e Faruk.
Havia regras seguidas há muito tempo por ambas as famílias que jamais deveriam ser quebradas. Ficou claro qualquer membro, de qualquer das duas famílias, que ousasse violar tais preceitos, pagaria um alto preço.
Qualquer um poderia dizer que a separação entre Elam e Safira significou um ato de covardia, pois a eles faltaria uma visão de mundo maior do que a deixada pelos seus pais. Entretanto, a identidade que cada um carregava consigo era um traço marcante. Além da perda patrimonial a que cada um dos jovens estaria sujeito, o que mais importava era a possibilidade de perda de contato com seus pais, mães e irmãos.
Elam e Safira realmente viam o mundo de outra forma. Mas, procuravam manter seus referenciais. Ainda que inconscientemente, ambos os jovens carregavam a missão de dar prosseguimento às tradições de seus pais.
Certo dia, as ovelhas de Baruch foram acometidas por uma doença misteriosa que tratou de liquidá-las, uma por uma. Tal perda foi vista por ele como uma espécie de castigo divino pela aproximação entre Elam e Safira.
Baruch fazia questão de disseminar para quem quisesse ouvir que a aproximação entre Elam, seu filho, e Safira, filha de Faruk, havia contaminado seu lar e a todos que ali viviam, inclusive os animais.
A morte das ovelhas foi vista como um presságio ruim, que servia para alertar aos membros da família de Baruch que tal fato não poderia se repetir.
Por parte de Faruk, a morte das ovelhas de Baruch também era encarada como um castigo. Para ele, Deus havia se enfurecido com as supostas malícias de Elam diante de Safira, razão pela qual havia amaldiçoado o lar de Baruch.
O fato é que, cada um dos irmãos manifestava a crença que Deus estaria em seu lado.
Com o decorrer do tempo, Elam se casou com uma jovem moça, dando a Baruch três netos. E Safira também havia se casado com um amigo de Emir. Ela teve dois filhos.
Assim como fizeram com Elam, Dedan, Emir e Safira, Baruch e Faruk trataram de fomentar a rivalidade entre seus netos, mesmo que estes ainda fossem muito pequenos. Tanto Baruch como Faruk ensinavam a seus netos a lançar pedras sobre a propriedade da família considerada como rival, o que levou a ambas as famílias a colocar cercas de arame na parte de cima de seus muros e a melhor proteger suas criações de animais.
Tudo caminhava na sua mais perfeita rotina, quando uma tragédia se abateu sobre a família de Faruk. A notícia que chegara da cidade dava conta de que seu filho Emir havia sofrido um acidente enquanto transportava trigo para os comerciantes da cidade próxima à terra de seu pai. A carroça que guiava havia caído num barranco.
Tentando dominar os cavalos, Emir não conseguiu evitar a queda, vindo a morrer em decorrência de esmagamento pela carroça.
Faruk sofreu muito com a perda de seu filho homem. Além de ser mais velho que Safira, por ser homem, Emir era o herdeiro natural dos bens de Faruk.
A morte de Emir exerceu um forte impacto sobre Faruk que este logo adoeceu. Deixou de se levantar cedo e cuidar do campo. A plantação de trigo acabava por ficar abandonada. O mesmo acontecendo com as galinhas e as ovelhas.
Salma, mulher de Faruk, fazia o que podia para cuidar dos animais, enquanto Safira se dedicava à plantação de trigo.
Tomado pelo desgosto pela morte do filho, Faruk faleceu abraçado à fotografia de Emir.
Muitas pessoas acreditam que a morte de Faruk significaria o tão sonhado triunfo para Baruch. Imaginavam aquelas que, com o falecimento de Faruk, Baruch finalmente poderia adquirir as terras de seu irmão, mesmo considerando o pagamento de um alto preço aos herdeiros de Faruk. Afinal, essa era a meta de vida de cada um dos irmãos – se livrar do outro e adquirir a porção da terra que havia sido desmembrada por conta do falecimento de Abiel.
Mas, ao contrário do que todos esperavam, Baruch misteriosamente começou a adoecer. Tanto que, Dedan, que estudava em uma cidade muito longe, veio às pressas ver seu pai.
A notícia logo se espalhou pela cidade. Alguns atribuíram a doença de Baruch a uma doença. Para outras pessoas, a velhice de Baruch cobrava seu preço.
Afinal, qual seria o motivo do adoecimento de Baruch?
Há que diga que Baruch sofreu pela a morte de seu irmão Faruk.
Mas como poderia ser? Os dois não se odiavam?
Talvez este seja o real motivo. O ódio entre os irmãos parecia servir como motivação para a vida de ambos. Somente por meio da existência de um, o outro tinha razões para justificar seus atos e suas palavras.
Ao que parece, com o perecimento de um dos irmãos, o outro perdeu o sentido de sua própria vida.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O IMAGINÁRIO DAS SOMBRAS


No final do mês de novembro de 2009, o presidente da República Islâmica do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, esteve em visita à República Federativa do Brasil, gerando protestos de parlamentares, congregações judaicas, entidades homoafetivas (os LGBTs), grupos de direitos humanos, etc.
A vinda do presidente iraniano ao Brasil, a convite do presidente Luis Inácio Lula da Silva, reprisa a visita daquele à República Bolivariana da Venezuela, de Hugo Chavéz. E alguns dias depois, o presidente iraniano ainda realizou uma viagem à Bolívia, ou Estado Plurinacional de Bolívia, conforme seu nome oficial, a convite do presidente Evo Moralez.
Mas afinal, o que causa tanto arrepio em países como os Estados Unidos da América e Israel, em parlamentares brasileiros, entidades judaicas, homoafetivas (LGBTs) e naquelas ligadas à defesa dos direitos humanos? E, em plena era de globalização, caberia uma oposição tão acirrada ao presidente da República Islâmica do Irã, Mahmoud Ahmadinejad?
Cabe lembrar o momento “revolucionário” vivido na América Latina, em que figuras ilustres como Luis Inácio Lula da Silva, no Brasil, Hugo Chavéz, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, Augusto Zelaya, em Honduras, entre outros, encontram-se no poder e com um discurso que parece estar em harmonia quanto à ascensão de idéias que desafiam a até então vigente relação de poder entre as nações. O sistema de poder enjendrado pelos países considerados desenvolvidos, outrora liderados pelo chamado G-8, encontra-se sob franca contestação pelos países em desenvolvimento ou denominados como emergentes.
Seriam os ecos dos movimentos nacionais das décadas de 1950 e 1960, calados por grupos autoritários com a colaboração de intervenções estrangeiras como a dos Estados Unidos da América e de sua Agência Central de Inteligência (sigla CIA, em inglês), na América Latina?
Sob o vulto de personalidades “revolucionárias” como Fidel Castro, estariam Lula, Chavés e Morales, entre outros, dando continuidade a um processo de socialização e nacionalização tardia na América Latina?
Tal questão merece um ensaio próprio, o que aliás já foi publicado neste blog.
Mas, voltando a Mohamed Ahmadinejad e sua política, o que há de tão preocupante na visita do presidente da República Islâmica do Irã ao continente americano?
A oposição ao presidente do Irã se construiu na comunidade internacional, inclusive no Brasil, considerando as repetidas afirmações deste sobre a inexistência de acontecimentos com o holocausto (shoah), a predisposição em “varrer Israel do mapa”, a perseguição às chamadas minorias, como os homoafetivos, as supostas fraudes no processo eleitoral de 2009, a acusação de violação dos direitos humanos e a insistência em seguir com o processo de desenvolvimento nuclear.
Há uma tensão na comunidade internacional quanto ao plano nuclear do Irã. Em que pesem as informações prestadas pelo governo iraniano sobre o enriquecimento de urânio para fins meramente pacíficos, tal hipótese parece causar arrepio ao redor do globo, especialmente em países como Estados Unidos e Israel.
Diga-se que a inclinação antissemita (ou mais precisamente antijudaica) do presidente do Irã vem servindo para aumentar ainda mais a desconfiança com relação aos planos deste país para sua energia nuclear.
O que parece se tratar de uma mera tensão política de ordem internacional traz consigo um imaginário do medo, considerando experiências como a tomada do poder pelos nazifascistas e suas repercussões, como a aniquilação de milhares de seres humanos (judeus, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, e dissidentes políticos) na longínqua década de 1940, mas ainda fresca na memória coletiva da humanidade.
Parece que a tolerância e até a aparente simpatia de líderes de governos na América Latina estão despertando uma preocupação coletiva quanto a uma catástrofe anunciada. Ao que tudo indica, há uma constante preocupação que esta tolerância (ou ausência de crença num mal maior) possa fazer com que haja uma reprise do capítulo do nazismo na Europa e do genocídio que se seguiu naquele continente.
A fim de ilustrar tal preocupação, vale retornar no tempo, quando, em pleno processo expansionista da então Alemanha nazista, países como França e Inglaterra mostraram-se reticentes em realizar intervenções que pudessem livrar países como Áustria, Tchecoslováquia (atualmente, República Tcheca e Eslováquia) e Hungria das garras do autoritarismo.
Existem teorias sobre a não-intervenção da França e Inglaterra na Europa, como a que atribui tal omissão ao esgotamento financeiro e bélico das nações devido ao conflito mundial que havia se instalado em 1914-1919.
Mas, quem acreditava que o esgotamento financeiro e bélico serviria para impedir uma corrida armamentista mostrou-se um grave engano. Em poucos anos, sob o ditame dos nazistas, a República de Weimar se transformou num Estado autoritário, belicista e expansionista, determinado a vingar as “injustiças” do Tratado de Versalhes e a promover aquilo que achava ser sua missão cultural: subjugar povos, aniquilar vidas e sobrepor uma “raça ariana” aos demais grupos étnicos e culturais.
A reação da França e Inglaterra somente chegou após a invasão da Polônia, em setembro de 1939, o que os fatos demonstraram ter sido tarde demais. A Alemanha nazista já dominava a Europa Central e avançava em outras direções, como na Escandinávia (Dinamarca, Suécia e Noruega) e nos Balcãs. Tudo ia bem para os nazistas até a decisão de invadir a então União Soviética e o ataque japonês em Pearl Harbor, o que, além de trazer um poderoso inimigo do leste europeu para a guerra, acabou também por “convidar” os Estados Unidos da América para o conflito, ao lado da França e Inglaterra.
Da invasão da Polônia ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), milhões de vidas foram sacrificadas, uma soma financeira inimaginável foi gasta (o que, além de deixar as economias européias esgotadas, deslocou o centro do poder para os Estados Unidos da América) e um cenário mundial desolador se instalou. A tolerância com os nazistas ou a ausência da crença de que estes poderiam fazer “algo pior” deixou um legado traumático na comunidade internacional, o que serviu inclusive como a própria razão de ser da Organização das Nações Unidas (mesmo considerando as atuais críticas a sua organização e funcionamento) e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.
Resta saber o que a tolerância ou até mesmo a simpatia de governos, como os ditos “revolucionários” na América Latina, pode causar, considerando as intenções do governo iraniano. Será que um período de sombras como o vivido em 1939-19145 vai se repetir? Será que as “revoluções tardias” não estão míopes para ver aquilo que para muitos parece ser óbvio?
A autodeterminação dos povos e das nações constiui um direito reconhecido internacionalmente, mas espera-se que não seja tarde, pois, em se tratando de matriz nuclear, os resultados catastróficos muito provavelmente serão piores.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O VESTIDO, A MÍDIA E A BRUXA NA FOGUEIRA: DA LUXÚRIA À CATARSE.


No dia 22 de outubro deste ano, Geyse Arruda, de 20 anos, foi hostilizada pelos colegas, funcionários e professores do curso de turismo da Universidade Bandeirante de São Bernardo (UNIBAN) por usar um vestido curto cor de rosa-choque.
O incidente teria começado dentro da sala de aula e se propagado pelos corredores da instituição, culminando com xingamentos e palavras ofensivas em face da jovem estudante, levando a polícia militar paulista a intervir, a fim de garantir a segurança física daquela.
De acordo com depoimentos da própria estudante e de testemunhas que estavam nas dependências da instituição de ensino superior, tanto os funcionários como os professores teriam sido irônicos, quedando-se inertes em proteger a aluna, enquanto ouviam-se os brados de “puta, puta, puta”.
Tal fato pode trazer à tona algumas questões.
A primeira delas se refere à maneira como alunos, funcionários e professores da UNIBAN se comportaram, ainda que a aluna de turismo tivesse provocado o incidente. Em primeira instância, o incidente faz lembrar o antigo argumento de defesa do estuprador em face da vítima culpada ou provocadora. Há citações de perguntas como “como estava vestida a vítima” para justificar atos como o estupro e reforçar a tese de que o criminoso teria agido por um impulso irresistível provocado pela vítima. Esta alegação pode inclusive inverter os papéis, colocando a vítima como culpara e vice-versa.
A tese defensiva acima descrita parece ter sido superada na defesa de criminosos em casos como o estupro e o atentado violento ao pudor, por exemplo, ainda que encontre alguns adeptos.
Outra questão diz respeito às reais motivações para as ofensas a estudante Geyse Arruda. Há quem afirme usar top, minissaia ou vestidos tão curto ou mais do que a estudante ofendida.
Do ponto de vista da subjetividade, fica difícil determinar as reais motivações para o incidente, mas as ofensas proferidas pelos colegas de universidade de Geyse Arruda parecem dar conta de uma dinâmica social que remete à catarse.
As ofensas verbais dos alunos podem ser compreendidas como uma violência utilitária, em que, a partir do sacrifício de uma pessoa, une-se o grupo, naquilo que foi descrito por René Girard em A violência e o sagrado. Tratar-se-ia, pois, segundo o referido autor, de uma violência intestina, o que encontra argumento convergente em Georges Balandier, em A desordem: elogio ao movimento.
A agressão de torcedores de um time rival, o extermínio de um grupo étnico considerado minoritário ou mesmo a malhação do boneco de Judas durante a celebração de Sábado de Aleluia que antecede à Páscoa católica serviria pra exorcizar os demônios e unir os membros de um determinado grupo. E o mesmo parece ter ocorrido com a estudante Geyse Arruda e os demais alunos da UNIBAN.
Poder-se-ia até recorrer à canção de Chico Buarque Geni e o zepelim como fundo musical para o incidente: “Joga pedra na Geni, joga pedra na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é feita boa de cuspir, ela dá pra qualquer um, maldita Geni”.
Entretanto, ainda que se tratasse de uma “Geni”, a atitude dos alunos, funcionários e professores da UNIBAN pareceu não condizer com a democracia que se acredita viver. Ainda que Geyse Arruda fosse uma “Geni” (considerando-se o imaginário popular de que quem usa vestido curto “dá pra qualquer um”), nada parece justificar as ofensas por ela sofridas.
Numa democracia não se pode permitir o aviltamento da dignidade da pessoa humana, o que deveria ter sido reprimido pela UNIBAN, mas não foi. Ao contrário, funcionários e professores parecem ter assistido todo o incidente de modo passivo, o que ensejou a intervenção policial para garantir a integridade física da jovem estudante. E ainda que vestimenta de Geyse Arruda tivesse sido inconveniente, nada justifica as agressões sofridas por ela.
O incidente envolvendo a estudante Geyse Arruda e a UNIBAN atingiu proporções ainda maiores com a expulsão desta pela mencionada instituição de ensino e a cobertura da mídia nacional. Noticiários televisivos, jornais e até a mídia virtual, como o canal youtube, trataram de colocar o caso em destaque.
Mas, chega a ser paradoxal o comportamento de reprovação social pela utilização de um vestido curto por uma estudante de 20 anos (com um belo corpo, diga-se de passagem) frente a fenômenos midiáticos como o Big Brother Brasil (um dos campões de audiência) e de personalidades como a atriz, modelo e artista burlesca norte-americana Dita Van Teese, que por um strip-tease num copo gigante de Martini pode até cobrar aproximadamente 100 mil reais.
Mulheres seminuas aparecem em programas de televisão, como no citado Big Brother Brasil ou mesmo em programas humorísticos, transmitidos inclusive durante o chamado horário-nobre. Isso sem deixar de mencionar os trajes femininos contemporâneos de praia.
Enfim, pode-se pagar uma vultuosa soma para ver uma mulher se despir, aceita-se mulheres seminuas na televisão e convive-se com mulheres de biquínis pequenos nas praias, mas não se tolera uma mulher com um vestido curto numa universidade, durante uma aula de um curso noturno. E por que?
Será que Geyse Arruda representou algum perigo para o controle da libido de seus colegas de universidade? Será que Geyse Arruda, com belo rosto e corpo, representou alguma ameaça de ofuscar a beleza de suas colegas de universidade?
Seja como for, parece que Geyse Arruda interpretou (ainda que de maneira involuntária) o papel da herege que merece ser lançada à fogueira para aplacar o furor da sociedade, numa verdadeira cena de catarse. De mulher desejada, parece ter virado bruxa.
O caso envolvendo a estudante Geyse Arruda pode ter aflorado o imaginário coletivo da mulher culpada pelos males do mundo. O mito da mulher capaz de virar a cabeça dos homens e que por isso há que se reprimida, como as personalidades bíblicas Lilith e Eva, parece persistir, mesmo em comunidades ditas esclarecidas, como a comunidade acadêmica.
A direção da UNIBAN, ao expulsar a aluna Geyse Arruda (ainda que a instituição de ensino superior tenha voltado atrás em sua decisão) agiu como a Inquisição. Os atos da instituição de ensino falam por si próprios. E alunos, funcionários e professores se comportaram como o povo ávido pelo sofrimento da herege. Afinal, o sacrifício da vítima sacia a sede das massas e as absolve de seus pecados.
Geyse Arruda saiu das dependências da universidade coberta com um jaleco branco, como um sambenito (traje usado para identificar os acusados de heresia), e escoltada por autoridades policiais como quem se dirigia para a fogueira, após ter sido julgada pelo Inquisidor.
Ao que indica, em algumas universidades também há fogueiras prontas para serem acesas. E quem são as bruxas?

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

MUITO ALÉM DA LÓGICA


Numa quarta-feira, em março de 1980, cheguei ao edifício onde morava e me deparei com uma cena que jamais vou esquecer. Vi o Chico, nosso porteiro, bêbado e desolado.
Chico era um cara como tantos outros que tinham vindo do Nordeste, com sua família (mulher e sete filhos), em busca de uma vida melhor. Ele era da Paraíba.
Lembro que quando cheguei ao edifício, vi o Chico, naquele estado, sendo consolado por alguns moradores, inclusive pelo síndico, que parecia estar ora contrariado com o funcionário bêbado, ora com pena.
Mas, com pena de que?
Chico chorava copiosamente que nem uma criança.
Naquela quarta-feira, o improvável tinha acontecido, o Botafogo da Paraíba tinha vencido o Flamengo de Júnior, Zico, Andrade, Tita e Adílio (time que se seria campeão brasileiro naquele mesmo ano) por 2 a 1.
Nunca tinha perguntado ao Chico qualquer coisa sobre futebol. E pra mim a relação entre o Chico e o Botafogo da Paraíba parecia óbvia.
Pensei comigo: Pô, o cara é paraibano; lógico que deveria estar feliz com a vitória do time da terra dele.
Numa tentativa de alegrar o cara disse:
– Ô Chico, fica assim não rapaz, teu time da Paraíba venceu o Flamengo. Imagina, ver seu time vencer o Mengão, hein?
Foi aí que o Chico deu pra chorar mais ainda.
Fiquei constrangido. O tiro havia saído pela culatra.
Depois de mais choro, o Chico, com um tremendo bafo de cachaça, me falou o seguinte:
– Seu Carlos, eu torço é pelo Flamengo.
Foi aí que me dei conta de que estava enganado e que os “caras de lá” torciam pelos “times de cá”.
E ele ainda falou:
– O problema, seu Carlos, não foi o Botafogo ganhar o Flamengo. Marquei a vitória do Flamengo no jogo da loteria e com o Botafogo ganhando o jogo faltou um ponto pra eu fazer os treze!
O Chico tinha feito doze pontos na loteria esportiva e aquela zebra no Maracanã acabou com o sonho milionário do cara.
E o Chico dava a chorar.
O que dizer depois daquilo? Praticamente nada.
Coloquei a mão ombro dele e disse:
– É Chico... Bebe Chico, bebe.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

PAIS X ESCOLA: COMO FOI QUE OS PRIMEIROS SE TORNARAM INIMIGOS DA SEGUNDA.



Educai as crianças,
Para que não seja necessário punir os adultos
”. (Pitágoras)

"Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda". (Paulo Freire)

Há algum tempo, venho ouvindo relatos de educadores sobre suas angústias, no tocante às condições de trabalho, aos baixos salários, ao estresse e aos medos .
Destes relatos, um me chamou a atenção, considerando a recorrência e complexidade do tema. Um dia, uma amiga, que é educadora, me contou que um aluno da escola em que ela trabalha havia agredido uma colega de turma, dentro da sala de aula, na presença dos demais alunos. O que teria começado por uma discussão acabou gerando uma agressão física, cujos resultados foram graves.
Segundo me contou esta amiga, o problema havia sido gerado pelo fato da menina ter se negado em inserir o nome do agressor num trabalho de grupo, no qual este último sequer haveria participado. Diante da negativa da colega de turma, o menino partiu para a agressão física, causando na aluna lesão corporal que deixou marcas, além de um trauma psicológico.
E o conflito entre o aluno agressor e a vítima não parou por aí. Conta-se que ele chegou inclusive a ameaçá-la dentro de um ônibus, na saída da escola.
Frente à situação causada pelo aluno, a diretoria da escola decidiu transferi-lo de turno, além das medidas disciplinares cabíveis.
Nesta oportunidade, cabe registrar que o tal aluno possui um histórico de agressividade em relação aos seus colegas de escola. A agressão perpetrada em face da então colega de turma parece não ser um caso isolado do mencionado aluno.
Reitere-se que o aluno agressor não foi expulso da escola, mas tão somente transferido de turno, ou seja, do turno da manhã para o da tarde. Mas, em que pese a medida adotada pela escola, de tão somente transferir o aluno agressor de turno, a mãe deste aluno passou a reclamar junto à diretoria da escola, alegando que seu filho estava sendo prejudicado.
Parece óbvio que a tal mãe sequer se importou com as agressões sofridas por uma menina, provocadas por seu filho. Ao contrário, ela preferiu tão somente colocar seu foco sobre as supostas “injustiças” praticadas pela escola, mesmo tendo sido avisada sobre o comportamento agressivo e anti-social de seu filho.
O comportamento da mãe em tela traz à tona algumas questões que podem ser consideradas como relevantes no atual contexto.
A primeira questão que aqui pode ser suscitada diz respeito a velha história do “nós” e “eles”. A mãe do aluno parecia pouco se importar com as repercussões dos atos de seu filho. Somente interveio junto à escola para defender seus próprios “direitos” e os de filho. Para ela, tudo aquilo implicava constrangimento para seu filho.
O caso aqui narrado poderia até parecer um incidente isolado se não fossem outros relatos, como de uma mãe que, indignada pelo fato de uma professora ter retirado um aparelho de música de sua filha durante uma aula, resolveu se dirigir a uma Delegacia de Polícia, a fim de incriminar a docente e responsabilizar a instituição de ensino, e de uma mãe que agrediu a professora de sua filha depois de saber que a mesma havia repreendido a jovem por usar aparelho celular durante uma aula.
Pior para a primeira mãe, que ainda teve que ouvir críticas da delegada de polícia, em plena sede policial, e para a segunda que foi processada e condenada a pagar indenização por danos morais em favor da professora agredida.
Outra questão que aqui pode ser levantada se refere ao que se pode chamar de fenômeno da “terceirização da educação” por parte dos responsáveis legais de crianças e adolescentes.
Vive-se em tempos cuja demanda por status profissional e condições econômicas de subsistência se faz cada vez mais crescente. Homens e mulheres encontram-se submetidos tanto à pressão da manutenção do status quo como das demandas profissionais, que servem para sustentar suas respectivas famílias, frente ao tempo que parece curto . Ainda que um dia tivesse 48 horas, ainda assim não seriam suficientes para dar conta dos compromissos.
Babás, vizinhos, amigos, avós e a escola fazem parte deste processo de “terceirização da educação”, enquanto os verdadeiros responsáveis encontram-se ocupados.
Inegável que a escola possui responsabilidade na educação das crianças e dos adolescentes, até mesmo por força da legislação vigente no país. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 205, a Lei n° 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), em seu artigo 2°, e a Lei n° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em seu artigo 4°, assim estabelecem.
Além da garantia de boa qualidade, as instituições públicas e privadas de ensino são responsáveis pela integridade física e psíquica de seus alunos. Qualquer abalo à integridade física ou moral da criança ou adolescentes que se encontre sob a guarda de uma escola pública ou privada, ainda que transitória, acarreta o dever de reparar o dano, com base naquilo que juridicamente se denomina culpa in elegendo.
Se para a responsabilização das escolas públicas se aplica o artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil, para as escolas privadas rege o artigo 14 da Lei n° 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). Mesmo ante as críticas, a incidência da responsabilidade civil objetiva do artigo 14 da Lei n° 8.078/1990 às escolas privadas se dá em decorrência da natureza de prestação de serviços de sua atividade educacional.
Assim, quando ocorre algo à criança ou ao adolescente nas dependências de uma escola pública ou privada que lhe cause danos de ordem material (física ou patrimonial) ou moral, nasce o dever de indenizar por parte desta mesma escola. E nossos Tribunais de Justiça já têm se pronunciado neste sentido.
Entretanto, cabe questionar se a responsabilidade da escola, em alguns casos, seria exclusiva sua.
Imagine-se um caso em que um adolescente agride fisicamente outro adolescente que vem a sofrer seqüelas. Caberia exclusivamente à escola o dever de reparar o dano? E os responsáveis legais do adolescente agressor?
Acredito que, por força do próprio do caput do artigo 205 da Constituição da República Federativa do Brasil, do caput do artigo 2° da Lei n° 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e do caput do artigo 4° da Lei n° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a família (leiam-se os responsáveis diretos e indiretos das crianças e adolescentes) é solidariamente responsável ao Poder Público e às instituições de ensino (enquanto parte da sociedade) pela educação e pelos atos de seus filhos.
Atribuir exclusivamente à escola o dever de reparar o dano, excluindo-se de tal responsabilidade os responsáveis legais do agressor, ao meu sentir, parece uma injustiça e uma deturpação à mentalidade da lei.
O fato de entregar a criança ou adolescente a uma instituição de ensino para sua formação intelectual e ética não pode licenciar seus responsáveis (pais, avós, tutores, etc.) das atribuições que lhe são cabíveis.
Ademais, há que se ressaltar que a agressão cometida por um adolescente implica naquilo que a Lei n° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) denomina como ato infracional. Tal ato consiste numa conduta análoga a um crime ou contravenção penal cometido por pessoa adulta (art. 55 da Lei n° 8.609/1990).
Portanto, cabe um alerta para os responsáveis que acham que seus filhos não podem ser responsabilizados por condutas agressivas e danosas. Mesmo penalmente inimputáveis (art. 56 da Lei n° 8.069/1990), por serem menores de 18 anos, aos adolescentes podem ser aplicadas as chamadas medidas socioeducativas (art. 112 da Lei n° 8.069/1990), como: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção de regime de semiliberade ou internação em estabelecimento educacional.
Estas discussões pode inclusive servir de pauta para outro debate, mas, por ora, o que se quer resgatar aqui é a compreensão da aparente rivalidade que se estabeleceu entre os responsáveis legais de crianças e adolescentes e as escolas que estes últimos frequentam.
Afinal, o que houve?
Lembro-me quando era criança. Tinha por hábito conversar com os colegas de turma, mesmo durante as aulas. Talvez tivesse uma disposição para a socialidade além do normal, o que merecia repreensão por parte dos professores.
Nunca fui de desafiar um professor, apenas gostava de me distrair e distrair os colegas quando uma disciplina não me interessava. Anormal, garoto mau ou aluno ruim? Não, apenas fazia aquilo que crianças praticam até os dias atuais.
Devo admitir que já fui motivo de conselho de classe e reunião com pais por causa de minhas conversas durante as aulas, mas nunca (e isso faço questão de frisar) dei ensejo à reclamação por agressividade ou comportamento anti-social, seja com relação aos professores ou a colegas de escola.
E minha mãe, uma jovem viúva que trabalhava fora cerca de oito horas por dia para sustentar dois filhos, o que fazia? Não me batia, mas me deixava de castigo, deixando claro que aquilo se devia à reincidência de conversas em sala de aula.
Minha mãe era então uma carrasca? Óbvio que não. Apenas tentava me mostrar a importância dos limites, da responsabilidade e do respeito para com os outros.
Somente uma vez minha mãe interveio em meu favor. E foi quando realmente uma professora extrapolou sua competência, privando-me de lanchar porque não havia feito um dever de casa por completo.
Ouvindo os relatos de várias pessoas, fico me perguntando como os responsáveis legais de crianças e adolescentes se tornaram rivais das escolas onde estes últimos encontram-se matriculados. O que houve?
Se por um lado parece haver o reconhecimento da importância da educação em instituição oficial de ensino, pública ou privada, por outro, parece existir a ausência de reconhecimento da relevância do papel desempenhado por estas mesmas instituições na construção moral e ética de crianças e adolescentes.
Entre os responsáveis legais de crianças e adolescentes e as escolas parece se reproduzir a máxima de que “pra nós, todos os direitos; pra eles, todos os deveres”. Enquanto aos primeiros cabe o direito de ver seus filhos preparados para o mercado de trabalho, à escola cabe o cumprimento de tal expectativa.
Mas, quanto aos limites, por que os responsáveis legais de crianças e adolescentes têm se mostrado resistentes em compartilhar tal atribuição com a escola? Por que é que a escola não pode punir crianças e adolescentes agressivos ou com comportamento anti-social? Trocar um aluno agressor que ameaça os colegas de turma de turno significa um constrangimento injusto? E as vítimas, que as defende? A impunidade de crianças e adolescentes agressivos não contribui para que os mesmos tornem-se adultos pouco sociáveis?
À escola parecem ter ficado depositadas expectativas além de sua competência. Além de reproduzir as dinâmicas sociais extra-muros, a escola encontra-se envolvida com questões referentes à violência, à falta de ética, à ausência de solidariedade e ao padrão efêmero de afetividade .
Por certo, não há que se excluir das instituições de ensino os deveres que lhes são inerentes, mas colocar sobre elas todas as responsabilidades pela educação de crianças e adolescentes implica num desequilíbrio no processo de construção intelectual e ética destas.
Percebem-se inúmeros os relatos de responsáveis que adentram às escolas exigindo o cumprimento de direitos para suas crianças e adolescentes (os quais parecem conhecer muito bem o Estatuto da Criança e do Adolescente, neste sentido), bem como criticando alguma medida disciplinar aplicada por àquelas nas hipóteses de comportamentos agressivos ou anti-sociais, mas também parecem ser raros os relatos sobre responsáveis que procuram a escola para dialogar quando seus pupilos causam danos às instituições ou a terceiros.
Há casos narrados de crianças e adolescentes que chegam inclusive a agredir verbal e fisicamente seus educadores (diretores, professores, etc.). E os responsáveis legais por estes jovens, o que têm feito?
Achamos que, porque pagamos impostos e/ou mensalidades escolares, podemos exigir que as escolas públicas e privadas preparem nossos filhos para o vestibular e o mercado de trabalho, mas não podemos aceitar práticas pedagógicas que sirvam para tornar nossos jovens seres sociáveis. Não estaríamos desmerecendo as instituições que escolhemos para serem nossas parceiras na construção intelectual e ética de nossos jovens?
Será que não estamos sendo permissivos demais em relação às nossas crianças e adolescentes? E será que isso se dá pelo fato de nos sentirmos culpados pela nossa ausência diária, pois precisamos dar conta dos inúmeros compromissos e sustentar nossa família?
Será que, com isso, não estamos criando uma geração de jovens tiranos, que acham que tudo podem e nada devem?
Não estamos contribuindo para a construção de uma “ditadura do indivíduo”, em decorrência de nossos traumas com relação à “ditadura do establishment (Estado, padrões familiares, rigores sociais, etc.)? Ou seja, saímos de uma extremidade da corda para a outra?
Como passamos a enxergar a escola como nossa rival no processo de educação e construção intelectual e ética de nossas crianças e adolescentes? Não estaria na hora de reconhecer as competências das instituições de ensino no processo de educação de nossas crianças e adolescentes?
Desejamos que nossas crianças e adolescentes sejam somente bons advogados, médicos, comerciários, empresários, funcionários públicos, etc., ou, além disso, bons cidadãos?
Estas são algumas perguntas cujas respostas provavelmente nos façam compreender a importância de caminharmos junto à escola e não contra ela.
Talvez esteja na hora de um exercício de reflexão, para o bem de nossas futuras gerações.