segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O BAILE


Noite de sábado, pista cheia de uma casa na Lapa, Rio de Janeiro. No escuro, corpos se agitam, com a música eletrônica no fundo. Techno, Hip-Hop e Funk agitam a noite.
O DJ capricha no repertório que embriaga as pessoas, juntamente com bebidas e cigarros. Bebe-se de tudo. Fuma-se de tudo.
Os deuses só são alcançados mediante a embriaguez.
Na penumbra, homens e mulheres dançam e se comungam em gestos eróticos. Tudo fica à flor da pele.
Contratos sociais e convencionais dão lugar a contratos afetivos, efêmeros, líquidos.
Nada se combina. As coisas acontecem espontaneamente. Pra que falar se o que impera é a orgia. Um constante (re)arranjo se faz durante toda a noite. A dança e a circulação pela pista possibilitam encontros. Olhares, beijos e toques são os cartões de visita.
Todas as pessoas querem ver e ser vistas.
A vida pulsa, coletivamente. Mesmo quem tenta se conter, é irresistivelmente acolhido pela massa. Ninguém é de ninguém, e todo mundo é de todo mundo.
Os seguranças da casa se fazem presentes para manter a ordem, reconhecendo que vigora a desordem, ou, uma nova ordem. A ordem da vida que se liberta das amarras do cotidiano.
Aliás, não importa a idade, o sexo, a formação cultural ou a profissão. Nada serve para apartar. Tudo une.
Cada pessoa coloca sua máscara. Os mitos da racionalidade, da labuta e da morte sedem lugar aos deuses do inconsciente, da orgia, da festa, da alegria e da vida.
Deixa rolar. Esse é o tema da noite.
Viva a vida, ainda que seja somente no presente. Não se quer ser eterno, mas sim infinito. O agora se propaga no tempo. Pra que pensar no futuro. Who wants to live forever?
Deixa rolar.
A noite termina onde se quiser. Ali mesmo, naquela casa; num motel; na praia; pela cidade. Sabe-se lá
Deixa rolar.
Até lá, aproveite o baile e...
Deixa rolar.

O MENINO E O VALE


Bachir estava sentado num bloco de pedra, em frente à casa em que habitava com seus pais e irmãos. O chão de terra arenosa lhe servia de palco para sua imaginação. Nele, com um pequeno graveto, tecia retas e curvas, fazendo desenhos que iam do retrato de sua realidade até suas imaginações que planavam sobre sua cabeça como as aves que apareciam no céu azul.
Bachir era um menino como outros que vivam naquela vila encravada no meio de um vale cercado por montanhas áridas, formadas por pedras e algumas plantas que ousavam resistir às condições climáticas adversas. Casas de barro e tijolos envelhecidos serviam como marca da resistência humana num cenário desolador. Era uma vila pobre, com pessoas visivelmente humildes, em sua maioria, velhos. Crianças naquela vila eram muito poucas.
A subsistência dos habitantes da vila era garantida graças à atividade agrícola e à criação de alguns animais, como porcos e galinhas. Água naquela região era um recurso escasso. Só havia um poço para abastecer toda população local.
O interessante é que ninguém se aventurava a sair da vila, ou, pelo menos, ninguém que se tivesse notícia recente, pois conta-se que uma única pessoa havia partido há muito tempo e que ninguém soubesse mais dela.
Circulava entre os habitantes daquela vila uma lenda de que a pessoa que há muito havia partido se perdeu nos confins do mundo. Para eles, a vila representava uma espécie de centro do universo; tudo que estivesse fora dela e, portanto, além do alcance da visão de seus moradores, era considerado como perdido e fadado à desgraça.
Bachir cresceu e percebeu que seus pensamentos extrapolavam os limites daquela vila. O vôo das aves lhe dava a sensação de infinitude do universo frente às limitações daquela pequena comunidade. Olhava para o topo das montanhas que cercavam a vila e se perguntava se realmente não haveria nada além delas.
Bachir se perguntava se as pobres condições da vila onde morava se repetiriam além dos limites estabelecidos pelas montanhas. Via as aves e as nuvens atravessarem as montanhas. As idas e vindas das aves, numa liberdade invejável, começaram a lhe chamar a atenção.
Quando já tinha uma idade mais avançada e, segundo a cultura popular da vila, em plenas condições de se tornar independente de seus pais e até se casar, Bachir sentiu-se tocado pela vontade de quebrar certas tradições, sendo uma delas, a recomendação de não subir as montanhas para ver o que haveria além delas.
Para o povo local, a recomendação de partir para o topo das montanhas assumia uma condição divina, o que, na prática, se revelava como uma espécie de proibição. A simples menção a possibilidade de cruzar as montanhas era encarada pelas pessoas daquela vila como um tabú. Se o Criador havia confinado a população a viver naquele espaço físico limitado, mas em segurança, não caberia aos homens a ousadia de quebrar tal preceito. O castigo seria a perda no deserto e, conseqüentemente, morte por sede e fome.
Na mesma proporção que Bachir se entregava à necessidade de se aventurar pelas montanhas, sentia temor de que as lendas dos habitantes da vila se concretizassem. A vontade de imitar as aves ia de encontro ao medo da perdição e morte.
Certa noite, quando as atividades na vila haviam cessado até a manhã seguinte, Bachir resolveu testar sua coragem. Saiu de casa com uma bolsa contendo pão e água. Partiu por uma das montanhas que cercavam a vila, tomando cuidado para que não fosse visto.
Começou sua caminhada com um misto de euforia e medo. Quando já tinha percorrido uma boa distância, percebeu que a caminhada até o topo da montanha seria árdua. Além das condições inóspitas da montanha em questão, sua altura servia para intimidar qualquer um que por ela se aventurasse.
A temperatura caía muito ao anoitecer, revelando uma variação térmica de extremo contraste com as altas temperaturas dos dias.
Naquela noite, o medo foi maior do que a sede de ver o novo, fazendo com que Bachir retornasse para sua casa. Por mais duras que fossem as condições de vida na vila, pelo menos havia um sentimento de que nela estaria a única garantia de segurança física de seus habitantes, inclusive do jovem aventureiro.
O dia raiou e o menino voltou a olhar fixamente para as montanhas. Em sua mente havia uma mistura de segurança e covardia. Ficou angustiado e confuso.
Via as aves num vôo sem limites. Elas planavam, aproveitando as correntes de ar que atravessavam o vale. Ao fundo, as nuvens se moviam lentamente, surgindo por cima de umas montanhas, atravessando o vale e fugindo pelas montanhas do lado oposto.
Tal visão serviu para acentuar o sentimento de angústia em Bachir. Passou a noite em claro, virando e revirando em sua cama, iluminado pela lua cheia que se sustentava no céu.
No dia seguinte, se levantou cedo, como era de costume naquela vila, eis que havia obrigações a serem cumpridas. Mesmo assim, as tarefas desempenhadas durante aquele dia em nada distraíram a sua mente. Afinal, as montanhas estavam lá para lembrar-lhe da dúvida que habitava sua cabeça – ficar na segurança da humilde vila ou partir rumo ao desconhecido.
O dia passou. A noite caía e Bachir continuava olhando pela janela o topo das montanhas.
Aquilo se repetiu por várias vezes, chamando inclusive a atenção da mãe do menino. Quando não estava ocupado com os afazeres, Bachir permanecia com sua atenção voltada para os cumes das montanhas.
Com a intuição materna, aquela mulher percebia a vontade de seu filho. E, se por um lado desejava interromper qualquer possibilidade de aventura de seu filho, por outro, sentia que a hora da partida se aproximava. E essa hora havia chegado
Um dia, antes que a vila despertasse, Bachir partiu. Em sua pequena sacola, presa às costas, levava aquilo que supunha ser necessário para sua sobrevivência, pelo menos, para alguns dias.
Além da sacola, levava consigo um sentimento de despedida. Antes de sair de casa, deu uma última olhada em seus pais, que ainda permaneciam na cama, já que o dia não havia se firmado.
Bachir viu o reflexo do amanhecer no rosto de sua mãe. Percebeu a marca do tempo nas rugas do rosto e nas mãos da mulher que ali dormia. Não era uma mulher velha, mas que, devido à intensa carga de trabalho ao longo dos anos, havia envelhecido rapidamente.
Pela última vez, o menino viu seu pai e sua mãe, tomando todas as cautelas para que não fosse percebido. Não sabia ele que sua mãe o havia percebido ali bem em frente à porta do quarto do casal, a qual se encontrava entreaberta. Não percebia que aquela mulher havia optado por deixá-lo partir, mesmo considerando o temor de mãe.
Enfim, Bachir deixou a casa, partindo rumo às montanhas que aguardavam há muito a sua decisão.
Nas primeiras horas, a subida foi fácil. Mas, com o correr do tempo e o desgaste físico, a caminhada ficava cada vez mais difícil, levando o menino a pensar novamente se não seria melhor retornar para casa, como tinha feito em outra tentativa.
Parou e olhou par trás. Viu a humilde vila onde havia residido, notando que o que até então parecia grande não passava de um ponto na imensidão do vale.
Mas dessa vez, determinado em se deparar com o desconhecido, o outro lado das montanhas, Bachir prosseguiu. Levou um dia e uma noite inteira para chegar ao topo de uma das montanhas que o desafiava, até que no dia seguinte conseguisse chegar lá.
Tendo chegado ao topo de uma das montanhas, Bachir se deparou com uma paisagem muito diferente daquela a que estava habituado. Ao contrário de uma pequena vila no meio de um vale como solo árido, desta vez podia ver as riquezas naturais que se espalhavam bem a sua frente. A exuberância de uma extensa planície verde tomava conta do cenário que estava bem ali à frente do menino.
De início, foi tomado pela emoção, ao ver a paisagem mais rica que tinha visto em sua vida. Nunca tinha visto tanta riqueza, já que os extensos campos verdes e as fontes de água contrastavam como aquela paisagem árida do vale onde havia habitado.
Mas a emoção foi abalada pelas lembranças e pelo temor de seguir adiante. Como seguir em frente, rumo a lugares desconhecidos? Será que valeria a pena aceitar o desafio em troca de uma vida modesta mais segura?
A essa altura, Bachir já havia caminhado bastante para olhar para trás e rever a vila onde havia passado sua vida.
E foi naquele momento que decidiu seguir em frente. Se dispos a carregar consigo somente as lembranças do lugar onde viveu até então e das pessoas com quem conviveu.
Foi ali que sentiu que era o momento de ruptura, de busca pelo novo, de amplitude de concepção do sentido de sua própria existência. Pela primeira vez, compreendeu que viver a vida implica correr riscos.
E assim, Bachir partiu rumo ao desconhecido e à imensidão de possibilidades que a vida lhe reservara, diante do cenário que estava ali bem a sua vista e com a coragem de seguir em frente. E partiu.

O OUTRO


Num dia de sol radiante e céu azul, com nuvens esparsas e volumosas como chumaços de algodão alvos, o campo de trigo parecia um grande tapete dourado que se mexia ao leve toque da brisa. Em meio ao campo de trigo, Baruch cuidava de ramo por ramo, num zelo que revelava seu carinho para com a terra, herdada de seu pai, Abiel, por ocasião de seu falecimento. Além do cultivo de trigo, Baruch de dedicava a criação de galinhas e ovelhas.
Assim como Baruch, Faruk também cultivava trigo e criava animais. Faruk era irmão de Baruch por parte de pai. Abiel havia se relacionado com Ada e Aminah, as quais geraram Baruch e Faruk, respectivamente.
Com a morte de Abiel, Baruch e Faruk herdaram, cada um, uma metade da terra. Mesmo com o pai em comum, Baruch e Faruk nunca fizeram questão de manter uma boa relação. Pelo contrário, com a morte de Abiel, a discórdia entre os irmãos parecia crescer a cada dia, ao ponto de Baruch e Faruk selarem um pacto de ódio mútuo. E, em decorrência deste pacto, um irmão não se proporia a facilitar a vida para o outro.
A terra que outrora pertencera a Abiel foi dividida em duas partes iguais. Baruch ficou com uma metade e Faruk com a outra. Ambos faziam questão de deixar bem claro que na primeira oportunidade, buscariam forçar a saída do outro de sua parte da terra, com o intuito de unificar as porções, como nas dimensões originais.
Cada um dos irmãos habitava a terra com sua respectiva família. Baruch era casado com Miriam e tivera com ela dois filhos chamados Dedan e Elam. Já Faruk era casado como Salma, tendo Safira e Emir como filhos deste casal.
Tanto Baruch como Faruk se dedicavam quase que exclusivamente às plantações de trigo e criações de galinhas e ovelhas. Enquanto isso, Miriam e Salma tratavam de cuidar dos afazeres domésticos e da educação de seus filhos, dando prosseguimento à tradição de suas famílias.
Por parte de Baruch, Elam ajudava seu pai no cultivo da terra e na criação dos animais, em boa parte do dia. Nas manhãs, Elam estudava numa escola localizada numa cidade próxima. Dedan havia partido para estudar numa escola religiosa longe da terra de seu pai, o que para Baruch significava motivo de orgulho.
Emir e Safira também estudavam numa escola na mesma cidade em que Elam freqüentava outra instituição de ensino.
Apesar do pacto de ódio entre os irmãos, sua convivência se baseava na indiferença, até o dia em que algumas galinhas pertencentes a Faruk pularam a cerca rumo à propriedade de Baruch. Mesmo diante dos pedidos de Faruk, Baruch negou-se a devolver as galinhas que atravessaram a cerca que dividia as duas propriedades.
Para Baruch, as galinhas lhe pertenciam, pois haviam pulado o muro para dentro de sua propriedade, o que demonstrava que não foram roubadas. Tal afirmação irritou Faruk que, entendendo que a apropriação das galinhas por parte de Baruch significava um roubo, jurou vingança.
O tempo passou, enquanto a promessa de Faruk parecia ficar esquecida. A rotina dos irmãos, dedicada ao cultivo do campo e à criação de animais contribuía para que determinados sentimentos, como ódio e sede de vingança, fossem deixados de lado.
Mesmo fazendo questão de frisar que seus valores e culturas eram tão diferentes, ambos os irmãos e suas famílias levavam uma vida parecida. As atividades eram exercidas normalmente pelas duas famílias, de domingo à sexta-feira, quando, ao anoitecer deste dia, se dedicavam às tradições deixadas pelo patriarca Abiel. O cuidado especial com a higiene e a vestimenta marcavam, além das orações, as noites de sexta-feira.
Aos sábados, ambas as famílias não trabalhavam, em respeito às tradições familiares. Os afazeres normais à vida no campo somente eram retomadas no amanhecer de domingo.
Baruch e Faruk comercializavam ovelhas, galinhas, ovos e trigo com os moradores da cidade próxima, a mesma em que Elam, Emir e Safira estudavam. Mesmo diante da idéia de que o comércio desenvolvido pelos irmãos Baruch e Faruk significava uma concorrência direta, na prática, esta não se concretizava. Isto porque toda a produção de Baruch e Faruk servia para abastecer integralmente as casas e comércio da tal cidade.
A má relação entre Baruch e Faruk servia de assunto para as conversas na cidade. Considerando que a cidade era pequena e que todas as pessoas se conheciam, qualquer incidente não passaria despercebido.
Havia na cidade três grupos de pessoas. Um dos grupos simpatizava com a família de Baruch e somente adquiria os frutos de sua terra, enquanto outro grupo só comprava os produtos de Faruk.
Parecia que a desavença entre os irmãos chegava à vida dos habitantes da cidade, ainda que de maneira velada e não tão intensa como àqueles. Mas, ainda assim, tinha gente que dizia que somente comprava os bens vindos das terras de Baruch, eis que “este seria este o herdeiro legítimo de Abiel”. Para outros, por ser primogênito, Faruk seria o “verdadeiro herdeiro das terras de Abiel”.
Além dos dois grupos de simpatizantes, existia um terceiro grupo, mais volumoso e, que, sem se deixar levar pelo conflito entre os dois irmãos, dava pouca importância à origem dos produtos e das crias. Este grupo estava muito mais interessado em satisfazer suas necessidades, considerando os melhores preços oferecidos, do que se entregar ao conflito.
Junto a este último grupo, a concorrência entre Baruch e Faruk era acirrada. Os dois irmãos travam uma verdadeira corrida para ver quem chegava primeiro a cidade. A concorrência entre Baruch e Faruk tinha um fim maior do que o comercial; tratava-se de um jogo em que o objetivo era a ruína do outro.
Um dia, chegou aos ouvidos de Baruch que seu filho Elam estaria mantendo um suposto romance com Safira, filha de Faruk, o que para ele era inconcebível.
Elam e Safira pareciam não ligar para as desavenças de seus pais. Afinal, não conseguiam entender como dois irmãos de sangue, por parte de pai, faziam questão de se manter distantes. Mas, a distância que separava ambos os irmãos também fazia parte das tradições que envolviam ambas as famílias.
A aproximação entre Elam e Safira significava uma violação a tais tradições e, portanto, uma traição aos preceitos que eram tidos como inquestionáveis e invioláveis.
Por parte de Faruk, a aproximação entre Elam e Safira, sua filha, também não lhe agradava. Ele chegou, inclusive, a ameaçar Safira com a proibição de sair de casa.
A situação tomou uma dimensão que nem Miriam e Salma foram poupadas. Para seus maridos, estas seriam culpadas pelo suposto desleixo na educação de seus filhos.
O relacionamento entre Elam e Safira tinha um preço. A reprovação de seus pais, suas mães e seus irmãos era algo que não poderia ficar de lado. Tanto Baruch quanto Faruk haviam ameaçado Elam e Safira, respectivamente, com a possibilidade de deserdação, o que para os costumes locais era uma desgraça.
O conflito entre as duas famílias, devido ao relacionamento entre Elam e Safira, chegou ao clímax quando Emir interveio pela honra de sua família. Elam e Emir brigaram em pleno centro da cidade, na presença de inúmeras pessoas. Além dos hematomas e feridas nos corpos de ambos os rapazes, a briga parecia ter deixado marcas mais profundas no filho de Baruch e em Safira.
Elam e Safira perceberam que o preço a ser pago pelo romance era muito alto e que, portanto, não valia à pena continuar com aquele relacionamento. A separação do jovem casal serviu para mostrar a incompatibilidade entre as famílias de Baruch e Faruk.
Havia regras seguidas há muito tempo por ambas as famílias que jamais deveriam ser quebradas. Ficou claro qualquer membro, de qualquer das duas famílias, que ousasse violar tais preceitos, pagaria um alto preço.
Qualquer um poderia dizer que a separação entre Elam e Safira significou um ato de covardia, pois a eles faltaria uma visão de mundo maior do que a deixada pelos seus pais. Entretanto, a identidade que cada um carregava consigo era um traço marcante. Além da perda patrimonial a que cada um dos jovens estaria sujeito, o que mais importava era a possibilidade de perda de contato com seus pais, mães e irmãos.
Elam e Safira realmente viam o mundo de outra forma. Mas, procuravam manter seus referenciais. Ainda que inconscientemente, ambos os jovens carregavam a missão de dar prosseguimento às tradições de seus pais.
Certo dia, as ovelhas de Baruch foram acometidas por uma doença misteriosa que tratou de liquidá-las, uma por uma. Tal perda foi vista por ele como uma espécie de castigo divino pela aproximação entre Elam e Safira.
Baruch fazia questão de disseminar para quem quisesse ouvir que a aproximação entre Elam, seu filho, e Safira, filha de Faruk, havia contaminado seu lar e a todos que ali viviam, inclusive os animais.
A morte das ovelhas foi vista como um presságio ruim, que servia para alertar aos membros da família de Baruch que tal fato não poderia se repetir.
Por parte de Faruk, a morte das ovelhas de Baruch também era encarada como um castigo. Para ele, Deus havia se enfurecido com as supostas malícias de Elam diante de Safira, razão pela qual havia amaldiçoado o lar de Baruch.
O fato é que, cada um dos irmãos manifestava a crença que Deus estaria em seu lado.
Com o decorrer do tempo, Elam se casou com uma jovem moça, dando a Baruch três netos. E Safira também havia se casado com um amigo de Emir. Ela teve dois filhos.
Assim como fizeram com Elam, Dedan, Emir e Safira, Baruch e Faruk trataram de fomentar a rivalidade entre seus netos, mesmo que estes ainda fossem muito pequenos. Tanto Baruch como Faruk ensinavam a seus netos a lançar pedras sobre a propriedade da família considerada como rival, o que levou a ambas as famílias a colocar cercas de arame na parte de cima de seus muros e a melhor proteger suas criações de animais.
Tudo caminhava na sua mais perfeita rotina, quando uma tragédia se abateu sobre a família de Faruk. A notícia que chegara da cidade dava conta de que seu filho Emir havia sofrido um acidente enquanto transportava trigo para os comerciantes da cidade próxima à terra de seu pai. A carroça que guiava havia caído num barranco.
Tentando dominar os cavalos, Emir não conseguiu evitar a queda, vindo a morrer em decorrência de esmagamento pela carroça.
Faruk sofreu muito com a perda de seu filho homem. Além de ser mais velho que Safira, por ser homem, Emir era o herdeiro natural dos bens de Faruk.
A morte de Emir exerceu um forte impacto sobre Faruk que este logo adoeceu. Deixou de se levantar cedo e cuidar do campo. A plantação de trigo acabava por ficar abandonada. O mesmo acontecendo com as galinhas e as ovelhas.
Salma, mulher de Faruk, fazia o que podia para cuidar dos animais, enquanto Safira se dedicava à plantação de trigo.
Tomado pelo desgosto pela morte do filho, Faruk faleceu abraçado à fotografia de Emir.
Muitas pessoas acreditam que a morte de Faruk significaria o tão sonhado triunfo para Baruch. Imaginavam aquelas que, com o falecimento de Faruk, Baruch finalmente poderia adquirir as terras de seu irmão, mesmo considerando o pagamento de um alto preço aos herdeiros de Faruk. Afinal, essa era a meta de vida de cada um dos irmãos – se livrar do outro e adquirir a porção da terra que havia sido desmembrada por conta do falecimento de Abiel.
Mas, ao contrário do que todos esperavam, Baruch misteriosamente começou a adoecer. Tanto que, Dedan, que estudava em uma cidade muito longe, veio às pressas ver seu pai.
A notícia logo se espalhou pela cidade. Alguns atribuíram a doença de Baruch a uma doença. Para outras pessoas, a velhice de Baruch cobrava seu preço.
Afinal, qual seria o motivo do adoecimento de Baruch?
Há que diga que Baruch sofreu pela a morte de seu irmão Faruk.
Mas como poderia ser? Os dois não se odiavam?
Talvez este seja o real motivo. O ódio entre os irmãos parecia servir como motivação para a vida de ambos. Somente por meio da existência de um, o outro tinha razões para justificar seus atos e suas palavras.
Ao que parece, com o perecimento de um dos irmãos, o outro perdeu o sentido de sua própria vida.