quarta-feira, 4 de agosto de 2010

JUSTIÇA POR UMA "MERRECA": QUANDO O CIDADÃO IMPLORA PELO QUE É SEU.


Baseado em fatos reais.

Caso 1:
Pedro foi a uma agência bancária, a fim de receber uma verba a que tinha direito. Recebeu um bolo de dinheiro e deixou aquela agência bancária, se dirigindo a uma outra agência, de outro banco, com o objetivo de efetuar o pagamento de umas contas.
Para a sua surpresa, no ato do pagamento de suas contas, Pedro descobriu que em meio ao bolo de dinheiro havia uma nota de cinquenta reais falsa. A gerente da agência bancária reteve a nota e Pedro tomou ciência de que a nota seria enviada para o Banco Central.
Além do constrangimento pelo fato de Pedro parecer um emissor doloso de nota falsa, ele foi impedido de quitar uma das contas, considerando que não possuía outra nota como aquela. Acabou pagando a mencionada conta no dia seguinte, mas com multa e juros de mora.
Em posse dos documentos que comprovam a emissão de uma nota falsa por um banco, Pedro apresentou estes mesmos documentos a este banco, recebendo como resposta que seu pedido de concessão de uma nova nota de cinquenta reais seria analisada pela direção da instituição financeira.
Passados dez dias, Pedro retornou à agência bancária que lhe deu a tal nota falsa. Em outra surpresa, Pedro soube que seu pedido de devolução de uma nota de cinquenta reais foi indeferido pela direção da instituição financeira, a tal que lhe emitiu a nota falsa.
Diante do prejuízo financeiro, pela perda de uma nota de cinquenta reais, e da indignação pelo constrangimento passado no outro banco, como se fosse um criminoso (emissão dolosa de nota falsa constitui crime), Pedro decidiu processar o banco que emitiu a nota falsa e que não quis ressarci-lo por isso. Ingressou com uma ação judicial no final do ano de 2004.
Após quase cinco anos de tramitação do processo, a sentença deu ganho de causa a Pedro, condenando o banco que lhe emitiu a nota falsa a indenizá-lo pelos danos morais em quinhentos reais.
Inconformado, Pedro recorreu da sentença, promovendo uma apelação, a qual, um ano depois (o processo já tramitava por seis anos), manteve a sentença, quanto ao mérito, mas aumentou a indenização por danos morais para dois mil reais.

Caso 2:
Ana Maria saiu de casa, pela manhã, com o intuito de obter um empréstimo junto a uma instituição financeira para a compra da tão sonhada casa própria. Muito organizada e em dia com todas as suas obrigações, inclusive financeiras, Ana Maria levou consigo todos os documentos necessários à obtenção de tal empréstimo.
Além de possuir uma renda razoável, uma quantia necessária ao sinal do financiamento, emprego fixo e de estar em dia com todas as suas obrigações, Ana Maria sabia que seu nome jamais havia constado em algum cadastro restritivo de crédito.
Ana Maria chegou à agência da instituição financeira, apanhou uma senha para o atendimento e aguardou a sua vez. Chegada sua hora, Ana Maria apresentou todos os documentos necessários ao financiamento para a aquisição de sua casa própria.
Todavia, Ana Maria teve a surpresa de saber que seu nome constava no cadastro de (consumidores) maus pagadores. Seu nome constava naquele cadastro restritivo de crédito por uma suposta dívida.
Ana Maria explicou ao funcionário da agência que nada devia a qualquer pessoa ou instituição, inclusive ao banco que se dizia credor de uma dívida. Ela deixou a agência e se dirigiu à sede do cadastro de inadimplentes. E lá chegando, teve a confirmação de que seu nome estava registrado naquele cadastro.
Ana Maria entrou em contato com o referido banco, tendo como única resposta que era devedora e que, no máximo, o pagamento da dívida poderia ser negociado.
Ana Maria ingressou com uma ação judicial em face do banco que efetuou o registro de seu nome no cadastro de inadimplentes e que se dizia credor da dívida. Seu advogado juntou as provas e fez as alegações, as quais foram contestadas pelo tal banco, com todos os argumentos insuficientes à justificativa do fato.
Após quase sete anos de pendenga judicial, a decisão definitiva deu ganho de causa a Ana Maria, reconhecendo que esta sequer havia celebrado um contrato de empréstimo com o banco (que se dizia credor). Condenou ainda este banco a pagar a Ana Maria a quantia de cinco mil reais, com juros e correção monetária.

Caso 3:
João e sua família residem a mais de vinte anos num bairro na periferia da cidade. Desde o tempo em que lá foram morar, nunca tiveram uma gota de água sequer nas torneiras de sua residência, apesar dos inúmeros apelos à companhia de abastecimento de água da região.
Entretanto, mesmo sem receberem uma gota de água em sua residência, João e sua família sempre receberam as faturas referentes ao serviço de abastecimento por este bem, via correios. Isso, sem esquecer que o nome de João constava no cadastro de inadimplentes, haja vista o não pagamento das faturas pelo serviço de abastecimento de água.
O máximo que a companhia de abastecimento de água fez, foi enviar a casa de João uma equipe técnica, a fim de apurar os fatos por ele alegados. Os técnicos constataram que havia uma falha na tubulação (pertencente à própria companhia) de água que deveria abastecer a residência de João e seus familiares. Além disso, viram os técnicos da empresa que não havia hidrômetro na casa de João. Então, os mesmo técnicos se perguntaram como era realizada a aferição do consumo de água na residência de João, cujos valores só cresciam nas faturas.
Em suma, João não recebia água em sua residência, mas recebia, mês a mês, as faturas, cobrando-lhe valores por um bem que sequer usufruía.
Cansado da situação e informado sobre seus direitos, João decidiu acionar a empresa de abastecimento de água junto ao Poder Judiciário.
Com o intuito de dirimir o conflito, foi marcada uma audiência de conciliação para seis meses depois do protocolo da entrada (chama-se distribuição) da ação judicial. Nesta ação, além dos pedidos de instalação de um hidrômetro e do reparo na tubulação de água (de propriedade da companhia de abastecimento), João pleiteou indenização por danos morais, eis que seu nome havia sido incluído no cadastro de inadimplentes, sem que tivesse qualquer culpa.
Cabe lembrar que João recebia as faturas pela água que sequer chegava à sua residência.
No dia e hora da audiência de conciliação, João e os prepostos da empresa de abastecimento de água se sentaram à frente do conciliador. Após as advertências do conciliador sobre os riscos de uma ação judicial – demora no curso da ação, possibilidade de derrota (sucumbência) das partes etc. – chegou-se aos seguintes termos: a empresa de abastecimento de água instalaria o hidrômetro na residência de João, promoveria o reparo na tubulação de água e retiraria o nome de João do cadastro de inadimplentes, enquanto João, em contrapartida, pagaria parte do débito que constava em seu nome (diga-se, por uma dívida que sequer havia feito, uma vez que nunca usufruiu do abastecimento de água em sua residência).

Para refletir:
Estes são três casos de cidadãos que lutaram por seus direitos. Conscientes do que tinham direito e diante de fatos constrangedores, no mínimo, Pedro, Ana Maria e João procuraram o Poder Judiciário.
Pedro e Ana Maria obtiveram sucesso em seus respectivos intentos judiciais, mesmo após anos de espera. Pedro conseguiu a indenização por danos morais no valor de dois mil reais, além de ser-lhe paga uma nota de cinquenta reais, a título de danos materiais. Enquanto isso, Ana Maria recebeu a quantia de cinco mil reais.
Nos casos de Pedro e Ana Maria, os magistrados entenderam que houve dano moral, mas preocupados em “não causar enriquecimento sem causa” em favor daqueles, decidiram por indenizações que julgaram ser razoável e proporcional aos danos experimentados. Além disso, seguindo a doutrina jurídica e a jurisprudência (entendimento reiterado dos Tribunais de justiça), tomaram cuidado de não condenar os bancos em quantias consideradas altas.
Tudo parece fazer sentido se não fossem alguns detalhes. Tanto Pedro como Ana Maria não contribuíram para os danos que lhes foram causados pelos bancos. Ana Maria sequer fez um empréstimo num banco. Como poderia ter seu nome incluído no rol de maus pagadores?
Além disso, ambos os processos duraram mais de cinco anos. Por anos a fio, as ações judiciais de ambos tramitaram nos Tribunais de Justiça, até que, finalmente, decisões definitivas foram tomadas.
Ademais, cabe ressalva para o fato de que os réus nas duas ações judiciais eram instituições financeiras de grande porte, bancos com lucros líquidos na esfera de bilhões de reais.
Vigoram princípios entre os magistrados (juízes e desembargadores) de que as decisões judiciais, além, de reparar ou compensar os danos causados, devem servir de meio para “punir e educar” (finalidade punitivo-pedagógica da decisão judicial) as empresas fornecedoras de produtos e prestadoras de serviços, com o objetivo de melhor atender os clientes e os cidadãos, evitando os riscos e danos de seus empreendimentos e suas atividades.
Engraçado, não? As duas instituições financeiras acionadas respectivamente por Pedro e Ana Maria ganham anualmente bilhões de reais, tendo a primeira sido condenada, após cinco anos de pendenga judicial, ao pagamento de uma quantia de dois mil reais, enquanto a segunda foi condenada, após sete anos de trâmite da ação, a pagar a Ana Maria a importância de cinco mil reais.
Tudo isso faz refletir sobre a efetiva reparação dos danos causados a dois cidadãos: Pedro e Ana Maria. Da mesma forma, serve como ponto de reflexão a tal finalidade punitivo-pedagógica da decisão judicial (sentença, na primeira instância; e acórdão, na segunda instância). Como “punir e educar” instituições que faturam anualmente bilhões de reais com indenizações que sequer chegam ao patamar de mil reais por ano em que as ações judiciais correram nas mãos dos funcionários do Poder judiciário.
No caso de João, a coisa tomou uma dimensão de total desrespeito para com um cidadão, podendo-se até falar em agravamento da situação.
Seja munido pelo desejo de se livrar (ou livrar o Poder Judiciário) de mais um processo, pela vontade de “colaborar” para a solução de um conflito, ou seja lá pelo que for, o conciliador deixou de considerar fatos relevantes na promoção da Justiça, como o fato de ser João cobrado pelo consumo de água em sua residência, cujo serviço jamais foi usufruído por ele. João não tinha acesso à água por culpa exclusiva da companhia de abastecimento e, mesmo assim, seu nome foi negativado no cadastro de inadimplentes.
Mesmo diante desses fatos, João ainda teve que pagar parte da dívida por um serviço que jamais teve a chance de usufruir, para, somente depois, ter água em sua residência.
O acordo foi assinado pelas partes, pelo conciliador e, posteriormente, por um juiz de direito (ou, como se chama, juiz togado).
Detalhes: A companhia de abastecimento de água fatura anualmente milhões de reais, por um serviço público. Acompanhai de abastecimento de água teve ciência da ilegalidade de seus atos. João nunca teve acesso à água e, mesmo assim, teve que pagar por ela. João somente estudou até o quarto ano do ensino fundamental. Mesmo tendo ciência dos fatos e das responsabilidades da empresa de abastecimento de água e das incongruências (assim por dizer), o juiz de direito ratificou o que ficou decido na audiência de conciliação. Ou seja, João não usufruía do serviço de abastecimento de água e ainda foi convencido a pagar por isso para que seu nome fosse retirado do cadastro de inadimplentes.
Como e por quê? O juiz achou justo e equitativo os termos do acordo? O mesmo juiz não leu os termos do acordo? O juiz não quis assumir mais um trabalho, com mais um processo, entre tantos outros que aparecem à sua frente, dia após dia?
O curioso é que o fato foi noticiado pela mídia como “mais um conflito resolvido pelo Poder Judiciário no processo de resolução de conflitos com ênfase na conciliação”, portanto, “mais um caso de promoção rápida da Justiça”.
Curioso, não?
Pois é. Tudo isso não passa de uma Justiça por uma “merreca”, quando o cidadão tem que implorar pelo que é seu.
Assim bate-se o martelo no país. Data venia (termo em latim que significa “com a devida licença”, usualmente utilizado nos Tribunais), aos magistrados e conciliadores.

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