segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O MENINO E O VALE


Bachir estava sentado num bloco de pedra, em frente à casa em que habitava com seus pais e irmãos. O chão de terra arenosa lhe servia de palco para sua imaginação. Nele, com um pequeno graveto, tecia retas e curvas, fazendo desenhos que iam do retrato de sua realidade até suas imaginações que planavam sobre sua cabeça como as aves que apareciam no céu azul.
Bachir era um menino como outros que vivam naquela vila encravada no meio de um vale cercado por montanhas áridas, formadas por pedras e algumas plantas que ousavam resistir às condições climáticas adversas. Casas de barro e tijolos envelhecidos serviam como marca da resistência humana num cenário desolador. Era uma vila pobre, com pessoas visivelmente humildes, em sua maioria, velhos. Crianças naquela vila eram muito poucas.
A subsistência dos habitantes da vila era garantida graças à atividade agrícola e à criação de alguns animais, como porcos e galinhas. Água naquela região era um recurso escasso. Só havia um poço para abastecer toda população local.
O interessante é que ninguém se aventurava a sair da vila, ou, pelo menos, ninguém que se tivesse notícia recente, pois conta-se que uma única pessoa havia partido há muito tempo e que ninguém soubesse mais dela.
Circulava entre os habitantes daquela vila uma lenda de que a pessoa que há muito havia partido se perdeu nos confins do mundo. Para eles, a vila representava uma espécie de centro do universo; tudo que estivesse fora dela e, portanto, além do alcance da visão de seus moradores, era considerado como perdido e fadado à desgraça.
Bachir cresceu e percebeu que seus pensamentos extrapolavam os limites daquela vila. O vôo das aves lhe dava a sensação de infinitude do universo frente às limitações daquela pequena comunidade. Olhava para o topo das montanhas que cercavam a vila e se perguntava se realmente não haveria nada além delas.
Bachir se perguntava se as pobres condições da vila onde morava se repetiriam além dos limites estabelecidos pelas montanhas. Via as aves e as nuvens atravessarem as montanhas. As idas e vindas das aves, numa liberdade invejável, começaram a lhe chamar a atenção.
Quando já tinha uma idade mais avançada e, segundo a cultura popular da vila, em plenas condições de se tornar independente de seus pais e até se casar, Bachir sentiu-se tocado pela vontade de quebrar certas tradições, sendo uma delas, a recomendação de não subir as montanhas para ver o que haveria além delas.
Para o povo local, a recomendação de partir para o topo das montanhas assumia uma condição divina, o que, na prática, se revelava como uma espécie de proibição. A simples menção a possibilidade de cruzar as montanhas era encarada pelas pessoas daquela vila como um tabú. Se o Criador havia confinado a população a viver naquele espaço físico limitado, mas em segurança, não caberia aos homens a ousadia de quebrar tal preceito. O castigo seria a perda no deserto e, conseqüentemente, morte por sede e fome.
Na mesma proporção que Bachir se entregava à necessidade de se aventurar pelas montanhas, sentia temor de que as lendas dos habitantes da vila se concretizassem. A vontade de imitar as aves ia de encontro ao medo da perdição e morte.
Certa noite, quando as atividades na vila haviam cessado até a manhã seguinte, Bachir resolveu testar sua coragem. Saiu de casa com uma bolsa contendo pão e água. Partiu por uma das montanhas que cercavam a vila, tomando cuidado para que não fosse visto.
Começou sua caminhada com um misto de euforia e medo. Quando já tinha percorrido uma boa distância, percebeu que a caminhada até o topo da montanha seria árdua. Além das condições inóspitas da montanha em questão, sua altura servia para intimidar qualquer um que por ela se aventurasse.
A temperatura caía muito ao anoitecer, revelando uma variação térmica de extremo contraste com as altas temperaturas dos dias.
Naquela noite, o medo foi maior do que a sede de ver o novo, fazendo com que Bachir retornasse para sua casa. Por mais duras que fossem as condições de vida na vila, pelo menos havia um sentimento de que nela estaria a única garantia de segurança física de seus habitantes, inclusive do jovem aventureiro.
O dia raiou e o menino voltou a olhar fixamente para as montanhas. Em sua mente havia uma mistura de segurança e covardia. Ficou angustiado e confuso.
Via as aves num vôo sem limites. Elas planavam, aproveitando as correntes de ar que atravessavam o vale. Ao fundo, as nuvens se moviam lentamente, surgindo por cima de umas montanhas, atravessando o vale e fugindo pelas montanhas do lado oposto.
Tal visão serviu para acentuar o sentimento de angústia em Bachir. Passou a noite em claro, virando e revirando em sua cama, iluminado pela lua cheia que se sustentava no céu.
No dia seguinte, se levantou cedo, como era de costume naquela vila, eis que havia obrigações a serem cumpridas. Mesmo assim, as tarefas desempenhadas durante aquele dia em nada distraíram a sua mente. Afinal, as montanhas estavam lá para lembrar-lhe da dúvida que habitava sua cabeça – ficar na segurança da humilde vila ou partir rumo ao desconhecido.
O dia passou. A noite caía e Bachir continuava olhando pela janela o topo das montanhas.
Aquilo se repetiu por várias vezes, chamando inclusive a atenção da mãe do menino. Quando não estava ocupado com os afazeres, Bachir permanecia com sua atenção voltada para os cumes das montanhas.
Com a intuição materna, aquela mulher percebia a vontade de seu filho. E, se por um lado desejava interromper qualquer possibilidade de aventura de seu filho, por outro, sentia que a hora da partida se aproximava. E essa hora havia chegado
Um dia, antes que a vila despertasse, Bachir partiu. Em sua pequena sacola, presa às costas, levava aquilo que supunha ser necessário para sua sobrevivência, pelo menos, para alguns dias.
Além da sacola, levava consigo um sentimento de despedida. Antes de sair de casa, deu uma última olhada em seus pais, que ainda permaneciam na cama, já que o dia não havia se firmado.
Bachir viu o reflexo do amanhecer no rosto de sua mãe. Percebeu a marca do tempo nas rugas do rosto e nas mãos da mulher que ali dormia. Não era uma mulher velha, mas que, devido à intensa carga de trabalho ao longo dos anos, havia envelhecido rapidamente.
Pela última vez, o menino viu seu pai e sua mãe, tomando todas as cautelas para que não fosse percebido. Não sabia ele que sua mãe o havia percebido ali bem em frente à porta do quarto do casal, a qual se encontrava entreaberta. Não percebia que aquela mulher havia optado por deixá-lo partir, mesmo considerando o temor de mãe.
Enfim, Bachir deixou a casa, partindo rumo às montanhas que aguardavam há muito a sua decisão.
Nas primeiras horas, a subida foi fácil. Mas, com o correr do tempo e o desgaste físico, a caminhada ficava cada vez mais difícil, levando o menino a pensar novamente se não seria melhor retornar para casa, como tinha feito em outra tentativa.
Parou e olhou par trás. Viu a humilde vila onde havia residido, notando que o que até então parecia grande não passava de um ponto na imensidão do vale.
Mas dessa vez, determinado em se deparar com o desconhecido, o outro lado das montanhas, Bachir prosseguiu. Levou um dia e uma noite inteira para chegar ao topo de uma das montanhas que o desafiava, até que no dia seguinte conseguisse chegar lá.
Tendo chegado ao topo de uma das montanhas, Bachir se deparou com uma paisagem muito diferente daquela a que estava habituado. Ao contrário de uma pequena vila no meio de um vale como solo árido, desta vez podia ver as riquezas naturais que se espalhavam bem a sua frente. A exuberância de uma extensa planície verde tomava conta do cenário que estava bem ali à frente do menino.
De início, foi tomado pela emoção, ao ver a paisagem mais rica que tinha visto em sua vida. Nunca tinha visto tanta riqueza, já que os extensos campos verdes e as fontes de água contrastavam como aquela paisagem árida do vale onde havia habitado.
Mas a emoção foi abalada pelas lembranças e pelo temor de seguir adiante. Como seguir em frente, rumo a lugares desconhecidos? Será que valeria a pena aceitar o desafio em troca de uma vida modesta mais segura?
A essa altura, Bachir já havia caminhado bastante para olhar para trás e rever a vila onde havia passado sua vida.
E foi naquele momento que decidiu seguir em frente. Se dispos a carregar consigo somente as lembranças do lugar onde viveu até então e das pessoas com quem conviveu.
Foi ali que sentiu que era o momento de ruptura, de busca pelo novo, de amplitude de concepção do sentido de sua própria existência. Pela primeira vez, compreendeu que viver a vida implica correr riscos.
E assim, Bachir partiu rumo ao desconhecido e à imensidão de possibilidades que a vida lhe reservara, diante do cenário que estava ali bem a sua vista e com a coragem de seguir em frente. E partiu.

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