quinta-feira, 8 de outubro de 2009

PAIS X ESCOLA: COMO FOI QUE OS PRIMEIROS SE TORNARAM INIMIGOS DA SEGUNDA.



Educai as crianças,
Para que não seja necessário punir os adultos
”. (Pitágoras)

"Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda". (Paulo Freire)

Há algum tempo, venho ouvindo relatos de educadores sobre suas angústias, no tocante às condições de trabalho, aos baixos salários, ao estresse e aos medos .
Destes relatos, um me chamou a atenção, considerando a recorrência e complexidade do tema. Um dia, uma amiga, que é educadora, me contou que um aluno da escola em que ela trabalha havia agredido uma colega de turma, dentro da sala de aula, na presença dos demais alunos. O que teria começado por uma discussão acabou gerando uma agressão física, cujos resultados foram graves.
Segundo me contou esta amiga, o problema havia sido gerado pelo fato da menina ter se negado em inserir o nome do agressor num trabalho de grupo, no qual este último sequer haveria participado. Diante da negativa da colega de turma, o menino partiu para a agressão física, causando na aluna lesão corporal que deixou marcas, além de um trauma psicológico.
E o conflito entre o aluno agressor e a vítima não parou por aí. Conta-se que ele chegou inclusive a ameaçá-la dentro de um ônibus, na saída da escola.
Frente à situação causada pelo aluno, a diretoria da escola decidiu transferi-lo de turno, além das medidas disciplinares cabíveis.
Nesta oportunidade, cabe registrar que o tal aluno possui um histórico de agressividade em relação aos seus colegas de escola. A agressão perpetrada em face da então colega de turma parece não ser um caso isolado do mencionado aluno.
Reitere-se que o aluno agressor não foi expulso da escola, mas tão somente transferido de turno, ou seja, do turno da manhã para o da tarde. Mas, em que pese a medida adotada pela escola, de tão somente transferir o aluno agressor de turno, a mãe deste aluno passou a reclamar junto à diretoria da escola, alegando que seu filho estava sendo prejudicado.
Parece óbvio que a tal mãe sequer se importou com as agressões sofridas por uma menina, provocadas por seu filho. Ao contrário, ela preferiu tão somente colocar seu foco sobre as supostas “injustiças” praticadas pela escola, mesmo tendo sido avisada sobre o comportamento agressivo e anti-social de seu filho.
O comportamento da mãe em tela traz à tona algumas questões que podem ser consideradas como relevantes no atual contexto.
A primeira questão que aqui pode ser suscitada diz respeito a velha história do “nós” e “eles”. A mãe do aluno parecia pouco se importar com as repercussões dos atos de seu filho. Somente interveio junto à escola para defender seus próprios “direitos” e os de filho. Para ela, tudo aquilo implicava constrangimento para seu filho.
O caso aqui narrado poderia até parecer um incidente isolado se não fossem outros relatos, como de uma mãe que, indignada pelo fato de uma professora ter retirado um aparelho de música de sua filha durante uma aula, resolveu se dirigir a uma Delegacia de Polícia, a fim de incriminar a docente e responsabilizar a instituição de ensino, e de uma mãe que agrediu a professora de sua filha depois de saber que a mesma havia repreendido a jovem por usar aparelho celular durante uma aula.
Pior para a primeira mãe, que ainda teve que ouvir críticas da delegada de polícia, em plena sede policial, e para a segunda que foi processada e condenada a pagar indenização por danos morais em favor da professora agredida.
Outra questão que aqui pode ser levantada se refere ao que se pode chamar de fenômeno da “terceirização da educação” por parte dos responsáveis legais de crianças e adolescentes.
Vive-se em tempos cuja demanda por status profissional e condições econômicas de subsistência se faz cada vez mais crescente. Homens e mulheres encontram-se submetidos tanto à pressão da manutenção do status quo como das demandas profissionais, que servem para sustentar suas respectivas famílias, frente ao tempo que parece curto . Ainda que um dia tivesse 48 horas, ainda assim não seriam suficientes para dar conta dos compromissos.
Babás, vizinhos, amigos, avós e a escola fazem parte deste processo de “terceirização da educação”, enquanto os verdadeiros responsáveis encontram-se ocupados.
Inegável que a escola possui responsabilidade na educação das crianças e dos adolescentes, até mesmo por força da legislação vigente no país. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 205, a Lei n° 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), em seu artigo 2°, e a Lei n° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em seu artigo 4°, assim estabelecem.
Além da garantia de boa qualidade, as instituições públicas e privadas de ensino são responsáveis pela integridade física e psíquica de seus alunos. Qualquer abalo à integridade física ou moral da criança ou adolescentes que se encontre sob a guarda de uma escola pública ou privada, ainda que transitória, acarreta o dever de reparar o dano, com base naquilo que juridicamente se denomina culpa in elegendo.
Se para a responsabilização das escolas públicas se aplica o artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil, para as escolas privadas rege o artigo 14 da Lei n° 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). Mesmo ante as críticas, a incidência da responsabilidade civil objetiva do artigo 14 da Lei n° 8.078/1990 às escolas privadas se dá em decorrência da natureza de prestação de serviços de sua atividade educacional.
Assim, quando ocorre algo à criança ou ao adolescente nas dependências de uma escola pública ou privada que lhe cause danos de ordem material (física ou patrimonial) ou moral, nasce o dever de indenizar por parte desta mesma escola. E nossos Tribunais de Justiça já têm se pronunciado neste sentido.
Entretanto, cabe questionar se a responsabilidade da escola, em alguns casos, seria exclusiva sua.
Imagine-se um caso em que um adolescente agride fisicamente outro adolescente que vem a sofrer seqüelas. Caberia exclusivamente à escola o dever de reparar o dano? E os responsáveis legais do adolescente agressor?
Acredito que, por força do próprio do caput do artigo 205 da Constituição da República Federativa do Brasil, do caput do artigo 2° da Lei n° 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e do caput do artigo 4° da Lei n° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a família (leiam-se os responsáveis diretos e indiretos das crianças e adolescentes) é solidariamente responsável ao Poder Público e às instituições de ensino (enquanto parte da sociedade) pela educação e pelos atos de seus filhos.
Atribuir exclusivamente à escola o dever de reparar o dano, excluindo-se de tal responsabilidade os responsáveis legais do agressor, ao meu sentir, parece uma injustiça e uma deturpação à mentalidade da lei.
O fato de entregar a criança ou adolescente a uma instituição de ensino para sua formação intelectual e ética não pode licenciar seus responsáveis (pais, avós, tutores, etc.) das atribuições que lhe são cabíveis.
Ademais, há que se ressaltar que a agressão cometida por um adolescente implica naquilo que a Lei n° 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) denomina como ato infracional. Tal ato consiste numa conduta análoga a um crime ou contravenção penal cometido por pessoa adulta (art. 55 da Lei n° 8.609/1990).
Portanto, cabe um alerta para os responsáveis que acham que seus filhos não podem ser responsabilizados por condutas agressivas e danosas. Mesmo penalmente inimputáveis (art. 56 da Lei n° 8.069/1990), por serem menores de 18 anos, aos adolescentes podem ser aplicadas as chamadas medidas socioeducativas (art. 112 da Lei n° 8.069/1990), como: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção de regime de semiliberade ou internação em estabelecimento educacional.
Estas discussões pode inclusive servir de pauta para outro debate, mas, por ora, o que se quer resgatar aqui é a compreensão da aparente rivalidade que se estabeleceu entre os responsáveis legais de crianças e adolescentes e as escolas que estes últimos frequentam.
Afinal, o que houve?
Lembro-me quando era criança. Tinha por hábito conversar com os colegas de turma, mesmo durante as aulas. Talvez tivesse uma disposição para a socialidade além do normal, o que merecia repreensão por parte dos professores.
Nunca fui de desafiar um professor, apenas gostava de me distrair e distrair os colegas quando uma disciplina não me interessava. Anormal, garoto mau ou aluno ruim? Não, apenas fazia aquilo que crianças praticam até os dias atuais.
Devo admitir que já fui motivo de conselho de classe e reunião com pais por causa de minhas conversas durante as aulas, mas nunca (e isso faço questão de frisar) dei ensejo à reclamação por agressividade ou comportamento anti-social, seja com relação aos professores ou a colegas de escola.
E minha mãe, uma jovem viúva que trabalhava fora cerca de oito horas por dia para sustentar dois filhos, o que fazia? Não me batia, mas me deixava de castigo, deixando claro que aquilo se devia à reincidência de conversas em sala de aula.
Minha mãe era então uma carrasca? Óbvio que não. Apenas tentava me mostrar a importância dos limites, da responsabilidade e do respeito para com os outros.
Somente uma vez minha mãe interveio em meu favor. E foi quando realmente uma professora extrapolou sua competência, privando-me de lanchar porque não havia feito um dever de casa por completo.
Ouvindo os relatos de várias pessoas, fico me perguntando como os responsáveis legais de crianças e adolescentes se tornaram rivais das escolas onde estes últimos encontram-se matriculados. O que houve?
Se por um lado parece haver o reconhecimento da importância da educação em instituição oficial de ensino, pública ou privada, por outro, parece existir a ausência de reconhecimento da relevância do papel desempenhado por estas mesmas instituições na construção moral e ética de crianças e adolescentes.
Entre os responsáveis legais de crianças e adolescentes e as escolas parece se reproduzir a máxima de que “pra nós, todos os direitos; pra eles, todos os deveres”. Enquanto aos primeiros cabe o direito de ver seus filhos preparados para o mercado de trabalho, à escola cabe o cumprimento de tal expectativa.
Mas, quanto aos limites, por que os responsáveis legais de crianças e adolescentes têm se mostrado resistentes em compartilhar tal atribuição com a escola? Por que é que a escola não pode punir crianças e adolescentes agressivos ou com comportamento anti-social? Trocar um aluno agressor que ameaça os colegas de turma de turno significa um constrangimento injusto? E as vítimas, que as defende? A impunidade de crianças e adolescentes agressivos não contribui para que os mesmos tornem-se adultos pouco sociáveis?
À escola parecem ter ficado depositadas expectativas além de sua competência. Além de reproduzir as dinâmicas sociais extra-muros, a escola encontra-se envolvida com questões referentes à violência, à falta de ética, à ausência de solidariedade e ao padrão efêmero de afetividade .
Por certo, não há que se excluir das instituições de ensino os deveres que lhes são inerentes, mas colocar sobre elas todas as responsabilidades pela educação de crianças e adolescentes implica num desequilíbrio no processo de construção intelectual e ética destas.
Percebem-se inúmeros os relatos de responsáveis que adentram às escolas exigindo o cumprimento de direitos para suas crianças e adolescentes (os quais parecem conhecer muito bem o Estatuto da Criança e do Adolescente, neste sentido), bem como criticando alguma medida disciplinar aplicada por àquelas nas hipóteses de comportamentos agressivos ou anti-sociais, mas também parecem ser raros os relatos sobre responsáveis que procuram a escola para dialogar quando seus pupilos causam danos às instituições ou a terceiros.
Há casos narrados de crianças e adolescentes que chegam inclusive a agredir verbal e fisicamente seus educadores (diretores, professores, etc.). E os responsáveis legais por estes jovens, o que têm feito?
Achamos que, porque pagamos impostos e/ou mensalidades escolares, podemos exigir que as escolas públicas e privadas preparem nossos filhos para o vestibular e o mercado de trabalho, mas não podemos aceitar práticas pedagógicas que sirvam para tornar nossos jovens seres sociáveis. Não estaríamos desmerecendo as instituições que escolhemos para serem nossas parceiras na construção intelectual e ética de nossos jovens?
Será que não estamos sendo permissivos demais em relação às nossas crianças e adolescentes? E será que isso se dá pelo fato de nos sentirmos culpados pela nossa ausência diária, pois precisamos dar conta dos inúmeros compromissos e sustentar nossa família?
Será que, com isso, não estamos criando uma geração de jovens tiranos, que acham que tudo podem e nada devem?
Não estamos contribuindo para a construção de uma “ditadura do indivíduo”, em decorrência de nossos traumas com relação à “ditadura do establishment (Estado, padrões familiares, rigores sociais, etc.)? Ou seja, saímos de uma extremidade da corda para a outra?
Como passamos a enxergar a escola como nossa rival no processo de educação e construção intelectual e ética de nossas crianças e adolescentes? Não estaria na hora de reconhecer as competências das instituições de ensino no processo de educação de nossas crianças e adolescentes?
Desejamos que nossas crianças e adolescentes sejam somente bons advogados, médicos, comerciários, empresários, funcionários públicos, etc., ou, além disso, bons cidadãos?
Estas são algumas perguntas cujas respostas provavelmente nos façam compreender a importância de caminharmos junto à escola e não contra ela.
Talvez esteja na hora de um exercício de reflexão, para o bem de nossas futuras gerações.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O CONTROLE DA PALAVRA: UMA GRANDE ILUSÃO.


Quando, em 13 de agosto de 1961, os líderes da então República Democrática Alemã (RDA, ou Alemanha Oriental) construiram do Muro de Berlim, muito provavelmente, tinham em mente que aquela obra de arame farpado, aço e concreto sacramentaria a separação entre os blocos capitalista e socialista, com este último bloco sob a hegemonia da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
A República Democrática Alemã (RDA) se via ameaçada em sua existência, eis que cerca de 2 mil fugas diárias tinham sido registradas até o dia 13 de agosto de 1961, ou seja, 150 mil desde o começo do ano e mais de 2 milhões desde que fora criada (1).
Além disso, naquele contexto, a Europa se encontrava dividida, assim como o resto do planeta. E a possibilidade de insurreições como o levante húngaro de 1956 representava um inconveniente ao domínio soviético. A construção do Muro de Berlim marcou simbolicamente a separação geopolítica entre “nós” e “eles”.
Repentinamente, alemães ocidentais e orientais foram privados de manter comunicação. O sistema de transportes entre as duas partes da Alemanha foi subitamente interrompido. Avós, pais, filhos e amigos não mais puderam transitar e se comunicar, haja vista o "aperto" por parte da porção oriental da Alemanha.
Mais do que manter a segurança do bloco socialista europeu das “degenerações” do mundo capitalista, pelo isolamento, o Muro de Berlim garantiu (ainda que relativamente) a segurança das informações que davam conta da rotina político-social dos regimes totalitários da União Soviética e da chamada Cortina de Ferro. Os desmandos e as atrocidades cometidas por Joseph Stalin, frente aos dissidentes políticos e às minorias, assim como pelos governos que se seguiram na União Soviética, por Nicolae Ceausescu, na Romênia, e Erich Honecker, na Alemanha Oriental, podem servir como exemplos de beneficiários de um sistema que buscava a proteção do isolamento político e o controle das informações.
No entanto, paralelamente ao ideal de isolamento do bloco socialista europeu, o planeta se encontrava em pleno período conhecido como Guerra Fria, onde os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas fracionavam o mundo com o fomento de conflitos locais como a Guerra da Coréia (1950-1953), a Guerra do Vietnã (1959-1975), e aquele que, para alguns, por pouco, não lançou o mundo todo pelos ares: o embate pelo envio dos mísseis soviéticos a ilha de Cuba, em 1962, no que ficou conhecido como a Crise dos Mísseis.
Vale registrar a crise dos mísseis em Cuba, considerando a descoberta por parte dos Estados Unidos do envio de tais armas, graças a uma rede de informações que envolvia pessoas e equipamentos como os aviões U2. Por parte da mídia, a obtenção e divulgação destas informações somente eram possíveis pelos jornais, revistas, rádio e televisão. Junto a isso, as informações circulavam por cartas, fax, etc.
No âmbito político, o Muro de Berlim foi posto abaixo em novembro de 1989, pondo fim a divisão da Alemanha. O regime de Nicolae Ceausescu chegou ao fim com sua fuga e execução em dezembro daquele mesmo ano e, o que para alguns poderia parecer improvável, aconteceu: o monólito soviético desabou. A então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) foi desfragmentada em 15 repúblicas, em dezembro de 1991, com o processo de abertura político-econômica que se instalou (glasnost e perestroika).
Assim, o que parecia improvável para grande parte da opinião pública internacional, pelo menos até o início da década de 1980, aconteceu. E a pergunta que se instalou foi se países como Cuba, China e Coréia do Norte, por exemplo, suportariam os impactos da transformação ocorrida no sistema socialista europeu encabeçado pela então maior potência socialista. Isto porque, a extinção da República Democrática Alemã (ou Alemanha Oriental) e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), no fim da década de 1980 e início da década seguinte, representou o fim de um símbolo, de uma era: a Guerra Fria.
Na mesma esteira, restou uma incógnita acerca da força dos movimentos sociais frente a regimes como o soviético, o alemão oriental e o romeno. Em que pese a idéia de que o processo de abertura promovido estivesse associado às elites políticas, como sustenta Meyer (2) não há como negar o processo de corrosão do sistema que já havia se instalado entre as massas, num processo de efervescência
No caso da República Democrática Alemã (RDA), havia uma pressão ao sistema pelas bases, que atingiu um grau crítico quando começaram a ocorrer evasões descontroladas da população rumo à porção ocidental da Alemanha, via Hungria e Tchecoslováquia (3), o que, arame farpado, muro, cerca ou temor de fuzilamento não mais conseguiam impedir.
A colocação do Muro de Berlim abaixo teve um impacto muito mais simbólico do que propriamente militar ou político. O que estava em jogo era um dos direitos mais fundamentais dos seres humanos: a liberdade.
A queda do Muro de Berlim possibilitou a liberdade de locomoção e de comunicação. Gerações separadas por marco geográfico feito de arame farpado, aço e concreto, com a queda do Muro, finalmente, tiveram a oportunidade de se comunicar.
No caso romeno, a situação saiu de controle, quando Nicolae Ceausescu ordenou que o exército e sua política secreta abrissem fogo contra os manifestantes anti-comunismo que se aglomeravam em frente a sede do governo, em Bucareste. O tiro saiu pela culatra, eis que os membros das duas forças, que davam apoio ao regime de Ceausescu, se negaram a cumprir tais ordens, juntando-se à massa de manifestantes. Parecia uma reconstituição da Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal, em 1974, que pôs fim a regime ditatorial de Salazar.
Vale registrar que a queda do Muro de Berlim, a implosão do monolito soviético e o colapso dos regimes socialistas na Europa se deram justamente no período em que as chamadas novas tecnológica da comunicação e informação começavam a ganhar uma dimensão em nível global. A rede mundial de computadores (internet) serviu para consolidar uma Era Líquida (4), onde os limites não existem mais, especialmente aqueles construídos com cimento e tijolos.
Chegando-se ao século XXI, parecem ainda existir regimes que a todo custo tentam controlar a circulação da comunicação e das informações, sejam estes regimes totalitários ou democráticos. Sendo que, entre os primeiros, vale assinalar a República Islâmica do Irã, instituída pela revolução ocorrida no ano de 1979, que culminou com a queda do governo do Xá Reza Pahlevi (e sua fuga para o Ocidente) e o retorno do Aiatolá Khomeini, do exílio.
A revolução islâmica no Irã, em 1979, estabeleceu um Estado teocrático, submetendo o sistema político-jurídico e a cultura às leis religiosas do Corão (5). Em que pesem as acusações de corrupção e de opressão do regime anterior, a instituição da República Islâmica do Irã, com o apoio das massas (com destaque para os intelectuais e estudantes universitários, de ambos os sexos), solapou as liberdades da população. A vestimenta e a fala tornaram-se objetos de controle do Estado. A inadequação destas duas poderia causar a aplicação de castigos simples e até a pena morte, segundo os ditames das leis que passaram a vigorar daquele momento em diante.
Sob o prisma das democracias, cabe mencionar a consolidação do Estado Democrático de Direito pela República Federativa do Brasil, com o advento de sua Constituição Federal, em 1988.
Dentre os dispositivos concernentes às garantias individuais, no artigo 5° da Constituição da República Federativa do Brasil vigente, há a prescrição do pensamento, da liberdade de expressão e do acesso à informação, conforme se percebe pela leitura dos incisos IV e IX. Mas, estes mesmos incisos tratam da liberdade de pensamento e expressão como direitos relativos na medida em que estabelece limites para quem os exerce, e o direito ao agravo e à indenização por quem sofre abalo em sua imagem ou honra (6).
Há na República Islâmica do Irã uma pressão crescente das massas por abertura do regime, cujo objetivo primordial consiste na liberdade de expressão, o que tem ido de encontro aos interesses da classe dirigente daquele país, além de colocá-lo em uma tensão sócio-política. A tensão chegou a tal ponto que, no primeiro semestre de 2009, ocorreram vários conflitos, envolvendo agentes do governo, em um lado, e a massa composta em sua maioria por intelectuais e universitários, no outro lado.
Herdeiros dos intelectuais e universitários responsáveis pela queda de Xá Reza Pahlevi e a ascensão ao poder de Aiatolá Khomeini, em 1979, os intelectuais e universitários iranianos de hoje rejeitam abertamente o controle do Estado sobre aquilo que no Ocidente se convencionou chamar de Liberdades Individuais. A liberdade de expressão tornou-se o maior anseio destas classes, seguida de perto pelo sonhado direito das mulheres de abolir o uso obrigatório do chador (7), de trabalhar fora e de ter as mesmas oportunidades que os homens.
O temor da ocidentalização por parte do governo iraniano relaciona-se às transformações culturais tidas como inconcebíveis numa República Islâmica, cujo regime se assenta em bases religiosas fundamentalistas. E, para se evitar as tentações da “degradação da cultura ocidental”, controlar a fala e o corpo parecem ser os únicos mecanismos ao alcance do regime vigente da República Islâmica do Irã.
Mesmo com a censura do governo iraniano aos meios de comunicação, durante os distúrbios que eclodiram em junho de 2009, ao Ocidente chegaram imagens consideradas como aterradoras, como a morte de Neda Agha-Soltan, uma manifestante iraniana, com um tiro no peito, disparado por pessoas supostamente ligadas ao governo do país. As imagens foram exibidas pelos canais de televisão no Ocidente, graças à astúcia de alguns iranianos que as gravaram e as enviaram pela rede mundial de computadores (internet).
Além das imagens, inúmeras mensagens chegam ao Ocidente via Twitter (8), uma ferramenta da tecnologia da comunicação e informação que permite o envio de mensagens pelo aparelho de telefone celular.
Cabe ressaltar que os distúrbios ocorridos no Irã parecem ser a gota d’água (ou pelo menos quase, até então) de um movimento que pretende a abertura social e política, bem como contesta o resultado supostamente fraudulento da eleição para presidente do país, vencida por Mahmoud Ahmadinejad (9).
Quanto à República Federativa do Brasil, um debate tem sido travado acerca da utilização da rede mundial de computadores (internet) por candidatos aos cargos nas casas executivas e legislativas federal, estaduais e municipais. Se, de um lado existem aqueles que se manifestam contrários à utilização de tal recurso, alegando que isso poderia causar problemas, tais como uma liberdade exagerada de divulgação de campanhas e a ausência de controle dos órgãos oficiais, em outro lado, há pessoas que apóiam a iniciativa do uso das chamadas (novas) tecnológicas da comunicação e informação (TCIs), de modo que, mais uma vez, há um debate que gira em torno binômio liberdade-controle.
Importa mencionar que a utilização da rede mundial de computadores (internet) no Brasil vem ocorrendo no âmbito político de maneira crescente, especialmente a partir das últimas eleições para os cargos de prefeitos, com destaque para a divulgação da campanha do candidato Fernando Gabeira, então candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, no ano de 2008 (10). Além disso, existem páginas (sites) especializadas na divulgação dos dados referentes à vida política dos candidatos eleitos, como àqueles que dizem respeito aos seus comparecimentos às casas legislativas, ao número e tipos de projetos de leis apresentados, relevância destes mesmos projetos, etc.
Mesmo com as reservas que se deve tomar na análise de dados captados na rede mundial de computadores (internet), não se pode negar a relevância de tal instrumento de comunicação e informação no processo de transparência política num país que se autodenomina um Estado Democrático de Direito, como, no caso, o Brasil.
As chamadas novas tecnologias da comunicação e informação dinamizam a fala, que anteriormente só seria possível pelo encontro físico de dois ou mais agentes. Por muito tempo, a fala esteve associada à identificação dos agentes. Com as novas tecnologias, permite-se até o anonimato. Alguns fatos levam a crer que a mensagem importa mais do que seu transmissor, mesmo porque, em muitos casos, existe a impossibilidade de se ver a face de quem fala.
Teóricos se debruçam na análise sobre o poder da fala, como o faz Maffesoli (11), que a considera como um fenômeno ligado à dissidência, a qual, utilizando da astúcia, da dissimulação, abala a estrutura (violenta) do controle das instituições e organizações. Na concepção do pensador francês, a fala assume um caráter político, de abalo às estruturas, ao mesmo tempo em que se revela com um meio de troca social, naquilo que qualifica como orgiasmo.
Interessante notar que uma das principais preocupações de governos totalitários, assumidos ou travestidos de democracias, consiste em controlar a fala, seja ela oral ou escrita.
Controlar a escrita é mais fácil, mesmo porque se trata de algum palpável, que pode ser rasurado, apagado ou utilizado como prova em acusações. Com relação à fala, o mecanismo de controle é diferente. Para silenciar a fala, somente silenciando seu autor. Se bem que há pessoas que não têm o menor pudor em silenciar outras pessoas, ceifando-lhes a vida. Mas há que se reconhecer que os inconvenientes das repercussões podem ser maiores.
Daí talvez porque Yoani Sanchez ainda não tenha sucumbido na ilha de Fidel. Autora de um blog chamado Generación Y, Yoani posta em seu blog textos pertinentes ao cotidiano das pessoas em Cuba, lugar que todos aqueles não-alienados sabem que pessoas vivem, há muito tempo, em sérias dificuldades materiais.
Ainda que declare não fazer militância política contra o regime governamental cubano, certo é que as palavras de Yoani não são ignoradas pela opinião pública internacional, ávida por assistir a abertura daquele regime, o qual, querendo ou não, acontecerá, em mais ou menos dias.
O interessante é que Yoani não consegue ver suas postagens em seu próprio blog, haja vista o bloqueio a este tipo de mecanismo pelo governo cubano. Contudo, ainda assim a autora do blog Generación Y envia suas postagens para amigos no exterior, os quais dão conta do serviço para ela.
O que as novas tecnologias da comunicação e da informação fazem é colocar as mensagens num campo especial, entre a fala e a escrita. Do mesmo modo em que as mensagens – e-mails, scraps, torpedos, tweets, etc. – não podem ser negadas como escrita, também não podem ser negadas como uma espécie de “quase-fala”, dada a velocidade com que são transmitidas.
O twitter, por exemplo, possibilita que mensagens sejam transmitidas de aparelhos de telefones celulares multifuncionais. E é isso que a massa de estudantes na República Islâmica do Irã vem fazendo, burlando as tentativas do governo em reprimir as expressões.
E neste campo, a criatividade fala mais alto. Mensagens rápidas e “econômicas” são chaves para a comunicação. Vc ñ acha? Vj vc mesmo.
Com a ajuda destas novas tecnologias, “palavras são como o vento”, como já dizia o ditado popular. E como controlar o vento?
Parece que vive-se numa era em que a palavra e a escrita quase se confundem. A velocidade e volatilidade das mensagens escritas as tornam uma espécie de "quase fala".
Países como Irã, Brasil e Cuba foram aqui mencionados para ilustrar como as tentativas de se controlar a palavra parecem, frente às novas tecnologicas da comunicação e informação, ser inócuas. Existem pendengas em outros países como Argentina e Venezuela.
Na Argentina, o casal Kischner é acusado de fazer censura e perseguir a imprensa, como no caso que envolveu o jornal El Clarín. Na Venezuela, Chavez fechou emissoras de televisão e rádio, bem como promoveu alterações na legislação nacional, com o intuito de calar os opositores.
Diante do que foi aqui abordado, uma série de perguntas podem ficar no ar e, dentre um número quase infinito delas, vale trazer as seguintes:
1) Se a rede mundial de computadores (internet) tivesse sido implementada e atingisse o grau de desenvoltura como nos dias atuais, já a partir da década de 1960, quando o Muro de Berlim foi construído, a chamada Cortina de Ferro teria durado tanto?
2) Incidentes como a Crise dos Mísseis em Cuba teriam chegado àquele ponto crítico se houvesse um tráfego considerável de informações virtuais, e não pela utilização de espiões humanos ou mecânicos?
3) O monólito soviético não teria sido implodido mais cedo?
4) Até quando governos como o iraniano conseguirão barrar as tentativas de abertura por parte da massa de intelectuais e estudantes, especialmente no que se refere à consolidação do direito de liberdade de expressão? E mais, até quando o próprio governo da República Islâmica do Irã conseguirá sobreviver, nos moldes de como foi criada há cerca de 30 anos?
5) Qualquer tentativa de controle da comunicação e informação em período de campanhas eleitorais, por parte de governos considerados como democráticos, como no caso brasileiro, surtirá algum efeito prático com a utilização da rede mundial de computadores (internet) em larga escala, tanto pelos candidatos a cargos eletivos como pelos eleitores?
6) Diante das novas tecnologias da comunicação e informação, considerando-se ainda a velocidade e volatilidade das mensagens, as tentativas de controlar a palavra (ou a quase-fala) surtirão algum efeito prático?
No caso particular da República Federativa do Brasil, com a regulamentação do uso dessas novas tecnologias no âmbito da política, parece haver um reconhecimento da defasagem da idéia de controle em relação à dinâmica dos fatos sociais e das inovações tecnológicas.
Assim, como as perguntas, há uma gama de respostas.
Mas uma coisa parece fazer sentido, em tempos em que a comunicação e circulação de informações se fazem virtualmente: o controle da palavra é atualmente uma grande ilusão, senão, uma das maiores.

Notas:
(1) Vide em http://www.dw-world.de/dw/article/0,,608522,00.html, acessado em 18/09/2009.
(2) Cf. Meyer Michael. 1989: o ano que mudou o mundo – a verdadeira história da queda do muro de Berlim. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
(3) A Tchecoslováquia foi dividia em 1° de janeiro de 1993 em dois países independentes: República Tcheca e Esvoláquia.
(4) Expressão utilizada em alusão à liquidez do amor, do medo e do tempo, por Zygmunt Bauman, respectivamente em suas obras Amor Líquido (2004), Vida Líquida (2007), Tempos Líquidos (2007) e Medo Líquido (2008), todos pela Jorge Zahar Editores.
(5) Utilizam-se os termos Corão ou Al Corão para designar o documento de maior importância seguido pelos adeptos da religião muçulmana.
(6) Juridicamente, a imagem é tutelada como honra objetiva, ou seja, a percepção que uma pessoa física ou jurídica exerce na sociedade, ao passo que a honra se refere à honra subjetiva, enquanto seja compreendida como o sentimento que cada pessoa guarda de si mesma.
(7) Véu tradicionalmente usado pelas mulheres que cobre a cabeça, deixando os cabelos, os ouvidos e o pescoço cobertos, e apenas à mostra o rosto.
(8) Twitter é uma rede social e servidor para microblogging que permite aos usuários que enviem e leiam atualizações pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, conhecidos como tweets), através da própria Web, por SMS e por softwares específicos instalados em dispositivos portateis como o Twitterberry desenvolvido para o Blackberry. Extraído de http//pt.wikipedia.org/wiki/Twitter, acessado em 18/09/2009.
(9) Nas eleições para presidente do Irã, em 2009, supostamente marcadas por fraudes, Mahmoud Ahmadinejad venceu o candidato Mir Hossein Mousavi, apoiado principalmente por intelectuais e universitários.
(10) Sobre Fernando Gabeira e as eleições municipais, vide o texto Vozes, neste mesmo blog, em arquivos.
(11) Cf. Michel Maffesoli. A Dinâmica da Violência. São Paulo: Revista dos Tribunais, Edições Vértice, 1987.

DÉCADA DE 1980: QUANDO TODOS PODIAM SER CAMALEÕES

Vira e mexe, ouve-se alguém dizer que a década de 1980 foi uma “década perdida”.
Muito provavelmente, quem se refere à década de 1980 como “perdida” assim o faz porque possui um fascínio extremado às décadas que a antecederam, especialmente as de 1960 e 1970, ou desconhece a história.
Não há como negar a agitação cultural (da chamada contra-cultura) da década de 1960, no mundo e no Brasil. Movimentos sociais contra a guerra no Vietnã, em defesa do meio ambiente, em busca de igualdades raciais e sexuais, pela liberdade política, etc. deixaram suas marcas. Vivia-se na expectativa das transformações da Era de Aquários.
A Europa estava incendiada pela Primavera de Praga e pelo Maio Francês, ambos em 1968.
Nessa atmosfera, a geração beatnik (1) clamava por mais espaço em sociedades tidas como conservadoras. A juventude queria, a partir de então, assumir o poder (lembre-se do lema francês "nous sommes le pouvoir") ao mesmo tempo em que curtia os prazeres da vida. Se por um lado, havia o desejo de transformar o mundo, por outro, queria-se viver o presente – fazer sexo livre, consumir drogas e entregar-se ao ócio. Tudo isso, ao som dos The Beatles (2), The Rolling Stones, The Who, The Doors, Jimi Hendrix, Jeanis Joplin, entre outras personalidade e bandas.
“Faça amor, não faça Guerra” e “Paz e Amor” eram alguns dos lemas entoados ao final da década de 1960. O Festival de Woodstock (3) sintetizou, no apagar das luzes da década de 1960, o sonho de uma geração por um “mundo alternativo”, o que foi seguido pela juventude brasileira.
No caso do Brasil, além das influências das manifestações culturais externas, a juventude (principalmente da classe média urbana) encontrava-se envolvida pela questão política concernente à supressão progressiva das liberdades pelo regime militar, instituído pelo golpe na madrugada de 31 de março para 1° de abril de 1964. Uns jovens dedicavam-se à luta armada, na esperança de fazer frente aos militares e à influência norte-americana, como Fernando Gabeira e Franklin Martins. Enquanto isso, outros jovens utilizavam a música como sinal de protesto, com destaques para Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Os Mutantes, Geraldo Vandré, etc.
Movimentos culturais como a Tropicália representaram vozes da contra-cultura brasileira. Contestar o establishment era palavra de ordem.
Com “alegria, alegria”, e “aquele abraço”, “caminhando e cantando”, ainda que “meio desligado”, pretendia-se chamar a atenção para aquele “cálice”. Havia o sonho de um “mundo melhor”.
Passados os desencantos da década de 1960, chegou-se à década de 1970 sob o rock pesado de bandas como Deep Purple e Led Zeppelin, e, mais tarde, ao ritmo da disco music de KC & The Sunshine Band, The Begees e Donna Summer.
No Brasil, o confronto de grupos de esquerda armados, de um lado, e militares e paramilitares, de outro, continuavam a dar o tom da política, com os primeiros levando desvantagem. Médici, Geisel e seus respectivos generais faziam de tudo para que o ideal de Segurança Nacional e Progresso não fossem abalados. A “benevolência” dos militares de plantão com relação aos opositores políticos chegou ao ápice por conta de lemas como “Brasil, ame-o ou deixei-o”.
Enquanto isso, a partir da segunda metade da década de 1970, o Studio 54, em Nova Iorque, começava marcar época, servindo de modelo para boates no mundo, como algumas do Rio de Janeiro e em São Paulo (4).
A era do sexo, drogas e rock ‘n roll deu lugar a era do sexo, drogas e disco music. Camisas com “gola gaivota”, calças com bainhas boca-de-sino, sapatos com saltos altos e meias soquetes vestiam corpos ávidos por muita dança e por se fazer aparecer. Mas, junto com esta “nova era”, o fantasma da AIDS começava a deixar seus sinais.
No caso particular brasileiro, a década de 1970 foi, sobretudo ao seu final, marcada pelo movimento de abertura política que culminou com o processo de Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita (5), e a volta dos exilados no início da década de 1980.
Não há como esquecer a chegada de nossos exilados em aeroportos como o Galeão (atual Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim), na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, em meio a palmas, cantorias, abraços e lágrimas. A canção O Bêbado e A Equlibrista, composta por Aldir Blanc e João Bosco, e cantada na voz de Elis Regina virou até uma espécie de hino deste momento.
A sociedade brasileira que parecia cansada de tanta desilusão, opressão e violência, recobrou seu fôlego com o retorno dos exilados, com a derrocada da ditadura militar e com a efervescência política e cultural que se seguiu. Afinal, foram vinte anos sob o porrete de governos autoritários. O grito de liberdade estava entalado na garganta. Havia chegado a hora de dar o grito.
No entanto, ainda havia o que ser feito. Havia a necessidade de se reconstruir uma democracia que foi abortada prematuramente na madrugada de 1° de abril de 1964. E, por certo, a cultura não haveria de ficar de fora deste processo.
Assim como na década de 1960, a juventude de 1980 também buscava a afirmação de sua identidade e um papel na transformação em uma sociedade como a brasileira.
No campo da música, por exemplo, juntamente com os astros internacionais, entraram em cena diversas bandas brasileiras, cujos estilos variavam – Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Blitz, Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens, Titãs, Biquini Cavadão, etc.
Um referencial no movimento cultural da década de 1980 diz respeito à realização do festival Rock in Rio, em 1985. De 11 a 20 de janeiro daquele ano, várias bandas e astros nacionais e internacionais dividiram o palco montado na chamada Cidade do Rock, na divisa dos bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá.
Deu de tudo, de roqueiros como Queen, Iron Madden, Nina Hagen, Whitesnake, AC/DC, Scorpions, Ozzy Osborne e Barão Vermelho, passando pelos pops do Paralamas do Sucesso e do Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens, pelos regionais Alceu Valença e Elba Ramalho, chegando até em bandas do estilo new wave, como B-52’s e Go-Go’s (6). Uma verdadeira Torre de Babel musical.
Para quem se dispusesse a transitar entre as tribos na década de 1980, havia um vasto mundo. Punks, Darks, New Waves, Metaleiros, etc.
O início do movimento punk data da segunda metade da década de 1970. Questões sociais, econômicas e políticas contribuíram para o aparecimento na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos, de jovens descontentes com o sistema vigente.
Desde então, as ruas de cidades como Londres, Liverpool, Manchester, Berlim, entre outras, começaram a ser tomadas por jovens com cabelos com corte ao estilo “moicano” ou espetados, usando calças jeans rasgadas, acasalhos jeans ou de couro com emblemas costurados, botas do exército, correntes, pulseiras de couro ou metal, etc. E bandas como Sex Pistols e Ramones representavam, no plano internacional, essa tribo, na música.
O Brasil recepcionou essa nova ideologia e os punks nacionais puderam dançar e se manifestar ao som de grupos musicais como Plebe Rude, Inocentes, As Mercenárias, Garotos Podres, entre outras.
Lembro-me de uma vez em que assisti a um show no Circo Voador (mas não me recordo a data exata) com a participação das bandas Heróis do Dia, Plebe Rude e Inocentes. Aliás, o evento marcou a última apresentação da banda brasiliense Heróis do Dia.
O movimento punk serviu inclusive de inspiração para artistas como Angeli, que criou um personagem chamado Bob Cuspe.
Além dos punks, havia a tribo dos darks. Vestidos predominantemente com roupas na cor preta, com rostos pálidos e carregados de maquiagem (batom e lápis preto nos olhos) a tribo dos darks emergiu no Brasil sob a influência de bandas estrangeiras como Siouxsie & The Banshees, Bauhaus, The Cure, Sisters of Mercy e outras. Bandas como The Smiths, Everything But Girl, Eccho & The Bunnymen, Lloyd Cole & The Commotion e New Order também embalavam a noite dos darks, em boates próprias, como o Crepúsculo de Cubatão (7), localizado na Rua Barata Ribeiro, no bairro carioca de Copacabana, que um de seus sócios foi inglês Ronald Biggs, famoso por ter cometido o assalto ao trem postal britânico, em 1963 (8).
Entre bebidas exóticas como Kamikaze e Praia de Ramos, pessoas “diferentes” do convencional dançavam no subsolo da boate Crepúsculo de Cubatão. Cada um procurava o seu pedaço na parede (as pessoas dançavam com seus rostos virado para as paredes; "cada um na sua"), a fim de dançar, naquilo que atualmente poderia se compreender como “cada um no seu quadrado” (o piso da pista de dança tinha a aparência de um tabuleiro de xadrez).
Os adeptos do estilo new wave também deixaram sua marca na década de 1980. Costumavam a usar roupas coloridas e sem qualquer combinação. Vestir uma camisa laranja, uma calça verde e usar tênis lilás ou quadriculados, por exemplo, eram aceitáveis para quem curtia sol e música alegre. Na música, o grupo B-52’s dava o tom new wave.
Punks, darks, new waves... Como deixar de lado os metaleiros. Ao som de bandas como Iron Madden, os amantes do metal rock balançavam a cabeça, vestiam calças jeans surradas, jaquetas jeans, usavam tênis ou botas de couro estilo cowboy e deixavam os cabelos longos.
A par de bandas e tribos estilizadas, no Brasil havia grupos que curtiam bandas de música como Legião Urbana.
Aliás, é justamente a esta banda que se pode atribuir um dos hinos de uma geração, com a música Será.
Logo de cara, o refrão “tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você, não é me dominando assim que você vai me entender, posso estar sozinho, mas sei aonde vou...” sintetiza o grito de uma geração. Uma geração cansada de “nãos”, ávida por ser dona de seu próprio destino.
Importante aqui ressaltar aqui alguns fatos sobre esta década.
O primeiro deles se refere ao processo de abertura política pela qual o Brasil atravessava. Como dito, houve o retorno de políticos, artistas e intelectuais ao país, anos após o exílio, um movimento crescente pelas eleições diretas, cuja campanha ficou conhecida como Diretas Já!, e a organização de uma constituinte, que culminou na “Constituição Cidadã”, expressão cunhada por Ulisses Guimarães para a Constituição da República Federativa do Brasil até hoje vigente.
No âmbito das artes e da imprensa, Henfil e o pessoal do jornal O Pasquim davam um tom irônico à situação do país, satirizando a ditadura e chamando a atenção para as mazelas por ela deixadas, como a violação aos direitos humanos, as desigualdades sociais, corrupção, etc., enquanto Marta Suplicy, Marília Gabriela, Ala Szerman, Irene Ravache e Clodovil Hernandez, colocavam o sexo feminino em destaque no programa TV Mulher, cuja música de abertura era É Cor de Rosa Choque, de Rita Lee. Neste programa, a sexóloga Marta Suplicy escandalizava a sociedade conservadora ao falar sobre orgasmo feminino e citar a palavra "vagina".
O humor também fazia parte da grade de programação da televisão. Programas como Viva o Gordo (1981-1987) e Chico Anísio Show (1982-1990) faziam graça de tudo, inclusive da política. Pode-se também assistir aos dois últimos anos do programa Planeta dos Homens (1976-1982).
A juventude brasileira estava em voga no cinema, com filmes como Menino do Rio (1981), Bete Balanço (1984), Rock Estrela (1986), entre outros. Enquanto isso, na televisão, programas como Armação Ilimitada (1985) colocavam a imagem da juventude dentro dos lares e divulgando a geração saúde, em alusão às práticas esportivas, ao sol, à alimentação sadia e ao padrão estético-corporal.
Muitas coisas aconteceram na década de 1980, seja em que área for: artes, música, cinema, política, moda, etc.
Quem se dispôs a circular pelas tribos na década de 1980, sem preconceitos, talvez tenha tido a chance de ter vivido aquela década como um camaleão. Qualquer um pode ser um camaleão, e não somente o David Bowie (9).
Então, senhoras e senhores, com o perdão da palavra, década perdida, é o cacete!
Notas:
(1) A expressão Beatnik foi criada, com a adição dos termos da geração Beat e do satélite artificial soviético Sputnik, para designar a geração que se achava fora do centro das tomadas de decisão nas sociedade até a década de 1960. Esta juventude Beatnik seria responsável pelos movimentos de contra-cultura.
(2) A banda The Beatles foi marcada por duas fases, até o seu término em 1970. Da data de sua fundação, 1957, a 1966, a banda ficou famosa por suas músicas influenciadas pelo rock 'n roll. A partir de 1966, The Beatles se dedicaram a canções com conotações espirituais e psicodélicas.
(3) O festival musical Woodstock foi realizado de 15 a madrugada de 18 de agosto de 1969 no sítio localizado na pacata cidade de Bethel, no estado norte-americano de Nova Iorque.
(4) No Rio de Janeiro, destacaram-se as boates Hipopotamus e Papagaio Disco Club (filial da boate de São Paulo). Em São Paulo, o Papagaio Disco Club e o Banana Power eram as casas mais freqüentadas na época.
(5) Os termos da chamada Anistia Ampla, Geral e Irrestrita vêm sendo discutidos, pois a quem alegue que grupos militares e paramilitares violadores dos direitos humanos, que por décadas torturaram, seqüestraram e mataram, dela se beneficiaram. Assim, a Anistia teriam beneficiado não somente os persguidos políticos, mas seus algozes.
(6) A primeira edição do Rock in Rio, no Rio de Janeiro, em 1985, contou com: dia 11 de janeiro de 1985, Queen, Iron Maiden, Whitesnake, Baby Consuelo e Pepeu Gomes, Erasmo Carlos e Ney Matogrosso; no dia 12 de janeiro de 1985, George Benson, James Taylor, Al Jarreau, Gilberto Gil, Elba Ramalho e Ivan Lins; no dia 13 de janeiro de 1985, Rod Stewart, The Go-Go's, Nina Hagen, Blitz, Lulu Santos e Os Paralamas do Sucesso; no dia 14 de janeiro de 1985, James Taylor, George Benson, Alceu Valença e Moraes Moreira; no dia 15 de janeiro de 1985, AC/DC, Scorpions, Barão Vermelho, Eduardo Dusek e Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens; no dia 16 de janeiro de 1985, Rod Stewart, Ozzy Osbourne, Rita Lee, Moraes Moreira e Os Paralamas do Sucesso; no dia 17 de janeiro de 1985, Yes, Al Jarreau, Elba Ramalho e Alceu Valença; no dia 18 de janeiro de 1985, Queen, The Go-Go's, The B-52's, Lulu Santos, Eduardo Dusek e Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, no dia 19 de janeiro de 1985, AC/DC, Scorpions, Ozzy Osbourne, Whitesnake, Iron Maiden, Baby Consuelo e Pepeu Gomes; no dia 20 de janeiro de 1985, Yes, The B-52's, Nina Hagen, Blitz, Gilberto Gil, Barão Vermelho e Erasmo Carlos.
(7) A boate Crepúsculo de Cubatão (1984-1989) localizava-se na Rua Barata Ribeiro n° 543, Copacabana, no Rio de Janeiro. A boate recebeu este nome como ironia à cidade de Cubatão, considerada na década de 1980 como uma das cidades mais poluídas do mundo, numa região conhecida como Vale da Morte. A boate era freqüentada por adeptos do movimento dark (mas as pessoas apenas queriam ser diferentes), cujas roupas eram marcadas predominantemente pela cor preta, ou diferentes, como algumas pessoas preferem lembrar. Em 1989, a boate passou a se chamar Kitschnet.
(8) Ronald Arthur Biggs tornou-se famoso após assaltar um trem postal na cidade de Buckinghamshire, em 1963, na companhia de 15 pessoas. Responsável pelo roubo de 2,6 milhões de libras, no ano seguinte, foi detido juntamente com os comparsas. Mas fugiu da penitenciária, em 195, e chegou a Paris, tendo adquirido uma falsa identidade. Nos anos de 1970, chegou ao Brasil, onde estabeleceu domicílio. Decidiu retornar a Inglaterra em 2001 e, ao desembarcar em solo britânico, foi imediatamente preso. Foi solto em 2009, pos ordem do ministro da justiça Jack Straw, devido ao seu debilitado estado de saúde.
(9) David Bowie tinha o apelido de camaleão porque mudava de estilo musical e estético com frequência. Do visual psicodélico da década de 1970, inclusive quando cantava na banda Ziggy Stardust, David Bowie se tornou um cantor de música pop e que vestia trajes elegantes como terno e gravata.