quarta-feira, 7 de agosto de 2013

PENSO LOGO EXISTO (OU COGITO ERGO SUM): ceticismo metodológico de um daltônico


Numa noite de julho, sentado a uma das mesas, num canto da sala, na UNIRIO, durante uma aula da disciplina “Introdução à Filosofia”, Baptiste Noel Grasset, o professor, nos propõe falarmos sobre a dúvida, a partir do legado teórico de René Descartes.
Poderia falar de minhas dúvidas sobre a política ou, precisamente, acerca dos políticos, os quais, sinceramente, não sei se ainda tenho dúvidas ou se realmente já os conheço, considerando suas atitudes sínicas. Me defino como republicano e democrata, mas, às vezes, chego até a duvidar tanto da res publica – se realmente é pública –, como da democracia.
Estaria, no entanto, diante de uma experiência sensível.
Poderia discorrer sobre a existência de Deus, como fez o próprio Descartes, e, quiçá, ter uma percepção igual ou diversa dele, de Spinoza, de Nietzsche e de tantos outros. Deus existe? Como? Onde?
Talvez, para conhecê-lo, deveria recitar mantras ou consumir alguma substância como a cannabis, tomar um LSD, ao som de The Doors, com Jim Morrison dizendo “break on through to the other side!”, ou ainda, numa versão light, beber um chá de cogumelo e ouvir um “progressivo”, como Renaissance, na voz angelical de Annie Haslem cantando “ashes are burning”, ou Jethro Tull. Um sonho...
Que mal haveria? Afinal, foi num sonho, no qual estaria em frente uma lareira e com um papel na mão (papel?! ou seda?), que Descartes colocou tudo em dúvida. Ele mesmo, Deus...
Mas, vai que Deus realmente existe e, mediante uma dose a mais, eu não volte?! Prefiro, por ora, desconhecê-lo e manter minha mente e meu corpo juntos!
Poderia escrever sobre minhas dúvidas em relação ao tanto que estudamos e frequentamos as universidades. E para que tanto estudo? Já me graduei em Direito, já fiz mestrado em Educação, atualmente estou, inclusive, em pleno doutoramento nesta área, e, agora, ingressei numa licenciatura em Filosofia. Se vim atrás de respostas, parece que deparei-me com um “gênio maligno”, pois, as dúvidas nunca foram tão persistentes. Aliás, seria o tal gênio maligno o próprio professor Baptiste?
Pois, naquela noite de julho, como se não bastassem as provocações deste professor sobre a existência das coisas, inclusive do homem, e de Deus, segundo Descartes, este mesmo professor (em conluio com a professora Andrea Bieri, para quem vou à aula sempre com meu cachimbo) usa como exemplo a cor azul de uma cadeira próxima a ele.
Ia tudo tão bem...
“Aquela cadeira azul”, disse.
Verdade? Que nada! Eu duvido!
A tal cadeira pode ser azul para ele, mas não para mim, pois, sou dotado de discromatopsia, ou aquilo que popularmente chamam de daltonismo.
Em síntese, o daltonismo pode ser definido como uma disfunção da visão, a qual não tem a capacidade de diferenciar todas ou algumas cores. Isso foi descoberto no século XVIII, por John Dalton, um químico que era portador dessa “perturbação”.
No meu caso, como sou um “cara de sorte”, tenho um tipo mais específico, que atinge somente cerca de 1% (um por cento) da população mundial. Não consigo distinguir vermelho de verde, enquanto cores primárias, e azul de roxo, por exemplo. Mas, também não consigo diferenciar derivações, tais como laranja e ocre, verde musgo e cinza etc.
Um dia, estava em casa, assistindo a uma partida de rugby entre Irlanda e País de Gales. Logo, deparei-me com um problema, já que ambas as equipes trajavam seus uniformes tradicionais. O time da Irlanda jogava com camisas e meiões verdes, ao passo que País de Gales usava camisas e meiões vermelhos.
Não tive alternativa senão perguntar para minha mulher, que àquela altura estava ao meu lado, quem trajava qual cor de uniforme e, portanto, para que lado cada equipe atacava. Fiquei imaginando se eu estivesse em campo, carregando a bola. Para que lado iria? Para quem passaria a bola?
De acordo com a certeza de Descartes sobre Deus, só esse me tiraria dessa enrascada...
A dúvida com relação às cores em minha vida não é fato novo, dada a minha condição. Lembro-me de, quando era criança e gostava de desenhar e pintar, tinha uma caixa de lápis de cor da marca Caran D’Ache, com os lápis numerados e um pantone na tampa da caixa, o que me permitia saber qual cor estava utilizando.
Ganhei aquela caixa de lápis de cor, assim como outras da Faber Castel, mas, todas com números nos lápis e nas caixas.
Por exemplo, na caixa Caran D'Ache, o roxo é numerado de 102, ao passo que o azul escuro recebe o número 159. Enquanto isso, na caixa Faber Castel, o número 53 refere-se ao azul escuro, enquanto o número 55 é destinado ao roxo.
Meu daltonismo foi diagnosticado quando eu devia ter uns oito ou nove anos de idade. Em datas cívicas, por exemplo, eu pintava em roxo o céu das estrelas, na bandeira brasileira, quando haveria de pintar de azul.
Diante de tanta insistência, em trocar o azul pelo roxo, foi recomendado à minha mãe que fizesse um teste, com o intuito de aferir se eu realmente era daltônico. Diagnóstico: positivo. A partir dali, minha vida já teria a marca da dúvida.
Imagina, séculos atrás, eu pintando a bandeira brasileira e inserindo o roxo no lugar do azul. Os positivistas com seu racionalismo fundado na “ordem e progresso” teriam uma sincope, já que o roxo significa, entre outras características, o misticismo.
E na bandeira francesa? Inserindo o roxo, associado à nobreza e ao místico, ao invés do azul, ligado à liberdade. Os jacobinos teriam, provavelmente, cortado a minha cabeça na guilhotina, como um contrarrevolucionário.
E pintar a bandeira norte-americana, trocando o azul pelo roxo? “Um espião inglês! Fuzilem-no!”
Pois, tá aí uma outra coisa engraçada. Nasci numa época em que o mundo estava geopoliticamente dividido entre capitalistas e comunistas. “Nós”, do lado de cá, estávamos sobre a influência dos capitalistas norte-americanos, enquanto “eles”, do lado de lá, estavam sob o jugo comunista soviético. Capitalistas x comunistas, liberais x conservadores, “direita” x “esquerda” etc.
Pois, de lá pra cá, muita coisa mudou. No campo político, ficou realmente difícil saber quem defende qual bandeira. Governos ditos de “esquerda” ou “liberais” cometem os mesmos equívocos, ou até mais graves, do que aqueles de “direita” ou “conservadores”, uma vez que estes últimos tenham sido aparentemente suplantados. Os “vermelhos”, uma vez no lado de cá, praticamente se comportam como os “azuis”. Políticos antes ditos revolucionários defendem, hoje, que a polícia baixe o cacete nos manifestantes ou, quando não, vemos pessoas outrora ligadas a grupos “subversivos” que combateram a ditadura militar com emprego de armamentos, atualmente, no poder, defenderem manifestações pacíficas, mesmo diante de todo infortúnio (corrupção, descaso com os direitos sociais etc.) que assola este país.
Há também aqueles que defendiam o monopólio estatal nos serviços públicos e, tendo se tornado gestores públicos (presidente, governadores e prefeitos), optaram por privatizá-los.
Ao que parece vivemos aquilo que alguns chamam de pós-modernidade, cujas características consistem na ambivalência e na ambiguidade, entre outras. Uma era de confusões de cores e, portanto, de dúvidas.
Assim, sigo duvidando de tudo que para mim não pareça claro e distinto: das cores, se são aquelas que realmente as enxergo; dos políticos, pela própria confusão em seus atos; de nossas e de minhas próprias posições em relação ao mundo etc.
“Só sei que nada sei”, poderia dizer, em eco a Sócrates, numa reafirmação às minhas dúvidas. Aliás, sabendo que ele foi induzido à morte por ingestão de veneno, fico também na dúvida se alguém teria dado ou desejado dar umas porradas nele com aquela história de maiêutica (a partir do questionamento sobre um conhecimento prévio, a proposta insistente de uma nova ideia). “Conhece-te a ti mesmo”, teria dito o pensador grego.
Pois bem. Estava eu em casa, quando o interfone tocou. Era o pesquisador do IBGE, com perguntas para o Censo (pesquisa nacional por amostra domiciliar), a fim de saber quantas televisões, rádios, computadores, geladeiras, micro-ondas e banheiros eu tinha em casa. Pelo que soube, tratava-se de uma pesquisa nacional com o objetivo de diagnosticar o nível socioeconômico do brasileiro, considerando a cor de sua pele.
Não foi por outro motivo pelo qual, num determinado momento, ele me perguntou: “Qual é a sua cor?”
Diante dessa pergunta, disse-lhe, num tom sincero: “Não sei. Por favor, me defina”.
E ele respondeu: “Não posso fazer isso”.
“Mas, por quê?”, insisti.
Foi quando ele explicou-me: “Nós trabalhamos com a cor da pele a partir da autodefinição do entrevistado”.
Bom, quando nasci, fui registrado como de cor “branca”, considerando a cor da pele de meu pai e de minha mãe, num contexto, vale dizer, em que as oportunidades educacionais e profissionais estavam associadas à cor da pele. Quanto mais “branco”, mas chances de sucesso teríamos.
Pensei na minha cor de pele, segundo minha certidão de nascimento, na cor da pele de meus pais, na cor da pele do rapaz do IBGE que me entrevistava, e na relatividade que tal conceito suscita.
“Eu sou quem acho que sou? Essa tal cor é realmente a minha?”, indaguei em silêncio.
Considerando o meu daltonismo e a confusão das cores que ele provoca,  a experiência sensível não tem se dado muito a meu favor. Assim, colocando em dúvida, mais uma vez, a realidade que se apresentava para mim, misturei as cores do pantone do IBGE dentro de mim, como num pote, e respondi-lhe: “Mestiço” (o que o IBGE classifica como “pardo”).
Naquele instante, defini-me pela mente, deixando meu corpo numa posição secundária, como faria Descartes, na busca pelo conhecimento. Separei minhas “substâncias” – mente e corpo. E, pela independência da mente, cogito ergo sum. E, assim, isso se deu graças ao fato de seu ser uma coisa pensante e a meu daltonismo.
Mas, com relação ao resto, sigo duvidando...