Há algum tempo, tem-se visto algumas vozes clamando pela
redução da maioridade penal, hoje, estabelecida em 18 anos, especialmente quando
a mídia massifica a veiculação de notícias sobre adolescentes cometendo delitos.
Naturalmente, o adolescente de hoje é, em alguma medida,
diferente daquele de 1940, quando o atual Código Penal brasileiro entrou em
vigor, ou daquele do final da década de 1970, quando passou a vigorar a Lei nº
6.697/1979, que instituiu o então Código de Menores. Ao que parece, o advento
de novas tecnologias, mormente aquelas referentes à comunicação, como a rede
mundial de computadores (internet), e
a consolidação da “sociedade de consumo” causaram impactos nos adolescentes,
como, aliás, em todas as sociedades.
Pelo que se vê, e como alerta Calligaris (2000), o adolescente de
hoje não aceita mais a “moratória” que lhe foi imposta pelos adultos. Ele
trabalha (em alguns casos sustenta uma família inteira), tem a capacidade de
procriar e possui a habilidade para dirigir veículos, apesar de não ser-lhe
permitido fazê-lo. Portanto, hoje, ele reivindica o exercício das faculdades
condizentes com suas capacidades metais e físicas, como, por exemplo, eleger
seus representantes nos Poderes Executivos e Legislativos, nos três níveis:
federal, estadual e municipal.
O exercício desta faculdade (cabe lembrar que, pela
legislação atual, pessoas com idade entre 16 e 18 anos não estão obrigadas a
votar) vem, aliás, sendo usada com justificativa para aqueles que pretendem ver
a maioridade penal reduzida de 18 para 16 anos. “Já que os adolescentes podem
votar naqueles que vão fazer as leis, por que não podem responder sob a luz
destas mesmas leis?”, argumentam os defensores da redução da maioridade penal.
De fato, a pergunta traz em si uma resposta plausível à questão em pauta.
Seria, pois, uma decorrência lógica enviar adolescentes, com
idade entre 16 e 18 anos, que, nos termos da lei, cometem um “ato infracional”
(um ato análogo a crime), aos mesmos estabelecimentos para adultos que praticam
crimes. “Quem age como adulto, tem a plena capacidade mental de responder
penalmente como se um adulto fosse”, assim poder-se-ia argumentar.
Entretanto, cabe perguntar se a redução da maioridade penal
e, consequentemente, o envio de adolescentes aos presídios onde os adultos
considerados criminosos cumprem suas penas não representaria um retrocesso
àquilo que a Modernidade trouxe como uma conquista: a percepção de que crianças
e adolescentes são seres humanos em desenvolvimento.
Vale lembrar que a invenção conceitual de infância e
adolescência serviu para garantir direitos a pessoas que eram, mesmo em pleno
desenvolvimento intelectual e físico, tratadas como se fossem dotadas de todas as
capacidades para o exercício das escolhas e atividades típicas de pessoas
adultas. No século XIX, na Europa, por exemplo, crianças e adolescentes
trabalhavam em fábricas por longas horas. Ademais, o reconhecimento de crianças
e adolescentes como seres em desenvolvimento fez com que a educação fosse considerada
um dos elementos mais importantes daquilo que se entende como cidadania.
Considerando uma “sociedade em rede”, em que ídolos
midiáticos (atores, músicos, comediantes, jogadores de futebol, participantes
de reality shows etc.) tornam-se os “deuses”
de uma massa de pessoas que não podem ser quantificadas, ditando regras e
costumes, em que medida imputar aos adolescentes o status de criminosos e, assim, enviando-lhes aos presídios, não
representaria um ônus excessivo pelas escolhas que fazem, fundadas em moldes
comportamentais daqueles mesmos “deuses”? Ligam-se as TVs e lá estão eles, os
ídolos – de narcotraficantes moradores de favelas e periferias aos
“engravatados” de Brasília, que, “criminosos de colarinho branco”, valem-se de
um vasto corpo de advogados e até dão entrevistas, em poses soberbas.
Numa “sociedade de consumo”, em que o modelo de pessoa “boa”
e/ou “bem sucedida” é aquela que “tem” (basta ver a cobertura midiática sobre
aquelas pessoas que faturam milhões de reais ou dólares), ao invés daquela que
procura “ser”, a redução da maioridade penal para adolescentes não implicaria
um ônus em excesso em face daqueles que, vislumbrando as “maravilhas” dessa
mesma sociedade, desejam participar do mercado? Mesmo porque, numa sociedade de
consumo, são os consumidores quem ditam as regras...
Vale ainda pensar de que forma a redução da maioridade penal
dos adolescentes não significaria, condenando-os pelas “desgraças sociais”, uma
espécie de catarse das gerações anteriores pela sua incapacidade em legar às
crianças e aos adolescentes um futuro promissor. Afinal, as ideias de
“progresso”, “desenvolvimento”, “estudar significa conseguir um bom emprego”,
entre tantas outras, não foram cunhadas pelas presentes gerações?
Merece a reflexão se as presentes gerações apenas tentam sobreviver
do rescaldo da nossa incapacidade em cumprir tais promessas.
Assim como a primeira questão – “Já que os adolescentes
podem votar naqueles que vão fazer as leis, por que não podem responder sob a
luz destas mesmas leis?” – estas três últimas perguntas também podem trazer em
si suas respectivas respostas, inclusive para um mal-estar da intelligentsia (leiam-se políticos,
jornalistas e acadêmicos), ávida por uma resposta imediata às mazelas da
sociedade, como, por exemplo, a cena de um adolescente que, num sinal de
trânsito, empunha uma arma para um adulto em seu veículo, a fim de subtrair-lhe
seu aparelho de telefonia móvel (celular, smartphone
etc.), aquele que esse mesmo jovem viu num comercial na TV.
E pode nem ser para seu uso próprio, mas, provavelmente,
para adquirir uma droga e aplacar sua angústia de se viver numa “sociedade de
consumo”, uma sociedade em que “nós (a velha geração) hipotecamos o futuro”, no
dizer de Bauman (2012).
Quem já visitou uma instituição destinada à aplicação de medidas socioeducativas sabe que elas não são um "paraíso" na Terra. Da mesma maneira, ao contrário do que se tem interpretado, a Lei nº 8.069/1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não é benevolente para com os adolescentes que cometem atos infracionais, ainda que esta mesma lei necessite de reparos, tendo em vista o atual contexto e as peculiaridades dos atos dos adolescentes.
Toda cautela é pouca e, portanto, toda sobriedade é
necessária, mesmo porque, quando se vê um adolescente morador de favela ou
periferia cometendo um delito, logo pode vir à mente a ideia de que reduzir a
maioridade penal, para 16 ou até 14 anos de idade, é a solução para as mazelas
sociais, mas, quando se tem a notícia de que um alto contingente de
adolescentes de classe média encontra-se internado em instituições como a Fundação
Casa, em São Paulo (28%, segundo o censo de 2006), o clamor para a criminalização de adolescentes infratores
(ou, “em conflito com a lei”, para utilizar um jargão jurídico), e o envio
destes para os presídios, torna-se um mal-estar, posto que, como diz o velho
ditado: “pimenta nos olhos dos outros é refresco”.
BAUMAN, Zygmunt. Entrevista concedida ao canal Globo News,
programa Milênio, em 19/01/2012. Disponível em http://youtu.be/OcPD1pLdkoQ.
CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha,
2000.
PEREIRA, Elvis. Tráfico e desejo de consumo levam classe
média para a Fundação casa: cresce número de internações e apreensões; ‘se
continuar nessa toada vamos ter problemas’, admite presidente. O Estadão de São
Paulo. Disponível em www.estadao.com.br/noticias/impresso,trafico-e-desejo-de-consumo-levam-classe-media-para-a-fundacao-casa,449333,0.htm,
em 12/10/2009. Acesso em 25/04/2013.