quarta-feira, 4 de agosto de 2010

JUSTIÇA POR UMA "MERRECA": QUANDO O CIDADÃO IMPLORA PELO QUE É SEU.


Baseado em fatos reais.

Caso 1:
Pedro foi a uma agência bancária, a fim de receber uma verba a que tinha direito. Recebeu um bolo de dinheiro e deixou aquela agência bancária, se dirigindo a uma outra agência, de outro banco, com o objetivo de efetuar o pagamento de umas contas.
Para a sua surpresa, no ato do pagamento de suas contas, Pedro descobriu que em meio ao bolo de dinheiro havia uma nota de cinquenta reais falsa. A gerente da agência bancária reteve a nota e Pedro tomou ciência de que a nota seria enviada para o Banco Central.
Além do constrangimento pelo fato de Pedro parecer um emissor doloso de nota falsa, ele foi impedido de quitar uma das contas, considerando que não possuía outra nota como aquela. Acabou pagando a mencionada conta no dia seguinte, mas com multa e juros de mora.
Em posse dos documentos que comprovam a emissão de uma nota falsa por um banco, Pedro apresentou estes mesmos documentos a este banco, recebendo como resposta que seu pedido de concessão de uma nova nota de cinquenta reais seria analisada pela direção da instituição financeira.
Passados dez dias, Pedro retornou à agência bancária que lhe deu a tal nota falsa. Em outra surpresa, Pedro soube que seu pedido de devolução de uma nota de cinquenta reais foi indeferido pela direção da instituição financeira, a tal que lhe emitiu a nota falsa.
Diante do prejuízo financeiro, pela perda de uma nota de cinquenta reais, e da indignação pelo constrangimento passado no outro banco, como se fosse um criminoso (emissão dolosa de nota falsa constitui crime), Pedro decidiu processar o banco que emitiu a nota falsa e que não quis ressarci-lo por isso. Ingressou com uma ação judicial no final do ano de 2004.
Após quase cinco anos de tramitação do processo, a sentença deu ganho de causa a Pedro, condenando o banco que lhe emitiu a nota falsa a indenizá-lo pelos danos morais em quinhentos reais.
Inconformado, Pedro recorreu da sentença, promovendo uma apelação, a qual, um ano depois (o processo já tramitava por seis anos), manteve a sentença, quanto ao mérito, mas aumentou a indenização por danos morais para dois mil reais.

Caso 2:
Ana Maria saiu de casa, pela manhã, com o intuito de obter um empréstimo junto a uma instituição financeira para a compra da tão sonhada casa própria. Muito organizada e em dia com todas as suas obrigações, inclusive financeiras, Ana Maria levou consigo todos os documentos necessários à obtenção de tal empréstimo.
Além de possuir uma renda razoável, uma quantia necessária ao sinal do financiamento, emprego fixo e de estar em dia com todas as suas obrigações, Ana Maria sabia que seu nome jamais havia constado em algum cadastro restritivo de crédito.
Ana Maria chegou à agência da instituição financeira, apanhou uma senha para o atendimento e aguardou a sua vez. Chegada sua hora, Ana Maria apresentou todos os documentos necessários ao financiamento para a aquisição de sua casa própria.
Todavia, Ana Maria teve a surpresa de saber que seu nome constava no cadastro de (consumidores) maus pagadores. Seu nome constava naquele cadastro restritivo de crédito por uma suposta dívida.
Ana Maria explicou ao funcionário da agência que nada devia a qualquer pessoa ou instituição, inclusive ao banco que se dizia credor de uma dívida. Ela deixou a agência e se dirigiu à sede do cadastro de inadimplentes. E lá chegando, teve a confirmação de que seu nome estava registrado naquele cadastro.
Ana Maria entrou em contato com o referido banco, tendo como única resposta que era devedora e que, no máximo, o pagamento da dívida poderia ser negociado.
Ana Maria ingressou com uma ação judicial em face do banco que efetuou o registro de seu nome no cadastro de inadimplentes e que se dizia credor da dívida. Seu advogado juntou as provas e fez as alegações, as quais foram contestadas pelo tal banco, com todos os argumentos insuficientes à justificativa do fato.
Após quase sete anos de pendenga judicial, a decisão definitiva deu ganho de causa a Ana Maria, reconhecendo que esta sequer havia celebrado um contrato de empréstimo com o banco (que se dizia credor). Condenou ainda este banco a pagar a Ana Maria a quantia de cinco mil reais, com juros e correção monetária.

Caso 3:
João e sua família residem a mais de vinte anos num bairro na periferia da cidade. Desde o tempo em que lá foram morar, nunca tiveram uma gota de água sequer nas torneiras de sua residência, apesar dos inúmeros apelos à companhia de abastecimento de água da região.
Entretanto, mesmo sem receberem uma gota de água em sua residência, João e sua família sempre receberam as faturas referentes ao serviço de abastecimento por este bem, via correios. Isso, sem esquecer que o nome de João constava no cadastro de inadimplentes, haja vista o não pagamento das faturas pelo serviço de abastecimento de água.
O máximo que a companhia de abastecimento de água fez, foi enviar a casa de João uma equipe técnica, a fim de apurar os fatos por ele alegados. Os técnicos constataram que havia uma falha na tubulação (pertencente à própria companhia) de água que deveria abastecer a residência de João e seus familiares. Além disso, viram os técnicos da empresa que não havia hidrômetro na casa de João. Então, os mesmo técnicos se perguntaram como era realizada a aferição do consumo de água na residência de João, cujos valores só cresciam nas faturas.
Em suma, João não recebia água em sua residência, mas recebia, mês a mês, as faturas, cobrando-lhe valores por um bem que sequer usufruía.
Cansado da situação e informado sobre seus direitos, João decidiu acionar a empresa de abastecimento de água junto ao Poder Judiciário.
Com o intuito de dirimir o conflito, foi marcada uma audiência de conciliação para seis meses depois do protocolo da entrada (chama-se distribuição) da ação judicial. Nesta ação, além dos pedidos de instalação de um hidrômetro e do reparo na tubulação de água (de propriedade da companhia de abastecimento), João pleiteou indenização por danos morais, eis que seu nome havia sido incluído no cadastro de inadimplentes, sem que tivesse qualquer culpa.
Cabe lembrar que João recebia as faturas pela água que sequer chegava à sua residência.
No dia e hora da audiência de conciliação, João e os prepostos da empresa de abastecimento de água se sentaram à frente do conciliador. Após as advertências do conciliador sobre os riscos de uma ação judicial – demora no curso da ação, possibilidade de derrota (sucumbência) das partes etc. – chegou-se aos seguintes termos: a empresa de abastecimento de água instalaria o hidrômetro na residência de João, promoveria o reparo na tubulação de água e retiraria o nome de João do cadastro de inadimplentes, enquanto João, em contrapartida, pagaria parte do débito que constava em seu nome (diga-se, por uma dívida que sequer havia feito, uma vez que nunca usufruiu do abastecimento de água em sua residência).

Para refletir:
Estes são três casos de cidadãos que lutaram por seus direitos. Conscientes do que tinham direito e diante de fatos constrangedores, no mínimo, Pedro, Ana Maria e João procuraram o Poder Judiciário.
Pedro e Ana Maria obtiveram sucesso em seus respectivos intentos judiciais, mesmo após anos de espera. Pedro conseguiu a indenização por danos morais no valor de dois mil reais, além de ser-lhe paga uma nota de cinquenta reais, a título de danos materiais. Enquanto isso, Ana Maria recebeu a quantia de cinco mil reais.
Nos casos de Pedro e Ana Maria, os magistrados entenderam que houve dano moral, mas preocupados em “não causar enriquecimento sem causa” em favor daqueles, decidiram por indenizações que julgaram ser razoável e proporcional aos danos experimentados. Além disso, seguindo a doutrina jurídica e a jurisprudência (entendimento reiterado dos Tribunais de justiça), tomaram cuidado de não condenar os bancos em quantias consideradas altas.
Tudo parece fazer sentido se não fossem alguns detalhes. Tanto Pedro como Ana Maria não contribuíram para os danos que lhes foram causados pelos bancos. Ana Maria sequer fez um empréstimo num banco. Como poderia ter seu nome incluído no rol de maus pagadores?
Além disso, ambos os processos duraram mais de cinco anos. Por anos a fio, as ações judiciais de ambos tramitaram nos Tribunais de Justiça, até que, finalmente, decisões definitivas foram tomadas.
Ademais, cabe ressalva para o fato de que os réus nas duas ações judiciais eram instituições financeiras de grande porte, bancos com lucros líquidos na esfera de bilhões de reais.
Vigoram princípios entre os magistrados (juízes e desembargadores) de que as decisões judiciais, além, de reparar ou compensar os danos causados, devem servir de meio para “punir e educar” (finalidade punitivo-pedagógica da decisão judicial) as empresas fornecedoras de produtos e prestadoras de serviços, com o objetivo de melhor atender os clientes e os cidadãos, evitando os riscos e danos de seus empreendimentos e suas atividades.
Engraçado, não? As duas instituições financeiras acionadas respectivamente por Pedro e Ana Maria ganham anualmente bilhões de reais, tendo a primeira sido condenada, após cinco anos de pendenga judicial, ao pagamento de uma quantia de dois mil reais, enquanto a segunda foi condenada, após sete anos de trâmite da ação, a pagar a Ana Maria a importância de cinco mil reais.
Tudo isso faz refletir sobre a efetiva reparação dos danos causados a dois cidadãos: Pedro e Ana Maria. Da mesma forma, serve como ponto de reflexão a tal finalidade punitivo-pedagógica da decisão judicial (sentença, na primeira instância; e acórdão, na segunda instância). Como “punir e educar” instituições que faturam anualmente bilhões de reais com indenizações que sequer chegam ao patamar de mil reais por ano em que as ações judiciais correram nas mãos dos funcionários do Poder judiciário.
No caso de João, a coisa tomou uma dimensão de total desrespeito para com um cidadão, podendo-se até falar em agravamento da situação.
Seja munido pelo desejo de se livrar (ou livrar o Poder Judiciário) de mais um processo, pela vontade de “colaborar” para a solução de um conflito, ou seja lá pelo que for, o conciliador deixou de considerar fatos relevantes na promoção da Justiça, como o fato de ser João cobrado pelo consumo de água em sua residência, cujo serviço jamais foi usufruído por ele. João não tinha acesso à água por culpa exclusiva da companhia de abastecimento e, mesmo assim, seu nome foi negativado no cadastro de inadimplentes.
Mesmo diante desses fatos, João ainda teve que pagar parte da dívida por um serviço que jamais teve a chance de usufruir, para, somente depois, ter água em sua residência.
O acordo foi assinado pelas partes, pelo conciliador e, posteriormente, por um juiz de direito (ou, como se chama, juiz togado).
Detalhes: A companhia de abastecimento de água fatura anualmente milhões de reais, por um serviço público. Acompanhai de abastecimento de água teve ciência da ilegalidade de seus atos. João nunca teve acesso à água e, mesmo assim, teve que pagar por ela. João somente estudou até o quarto ano do ensino fundamental. Mesmo tendo ciência dos fatos e das responsabilidades da empresa de abastecimento de água e das incongruências (assim por dizer), o juiz de direito ratificou o que ficou decido na audiência de conciliação. Ou seja, João não usufruía do serviço de abastecimento de água e ainda foi convencido a pagar por isso para que seu nome fosse retirado do cadastro de inadimplentes.
Como e por quê? O juiz achou justo e equitativo os termos do acordo? O mesmo juiz não leu os termos do acordo? O juiz não quis assumir mais um trabalho, com mais um processo, entre tantos outros que aparecem à sua frente, dia após dia?
O curioso é que o fato foi noticiado pela mídia como “mais um conflito resolvido pelo Poder Judiciário no processo de resolução de conflitos com ênfase na conciliação”, portanto, “mais um caso de promoção rápida da Justiça”.
Curioso, não?
Pois é. Tudo isso não passa de uma Justiça por uma “merreca”, quando o cidadão tem que implorar pelo que é seu.
Assim bate-se o martelo no país. Data venia (termo em latim que significa “com a devida licença”, usualmente utilizado nos Tribunais), aos magistrados e conciliadores.

ANTROPOFAGIA


Outro dia, pela manhã, ao sair de casa, me deparei com a seguinte cena: uma senhora idosa caminhava pela calçada quando foi atropelada por um jovem montado numa bicicleta, enquanto trafegava pela calçada, em alta velocidade. Após ser atingida, a senhora idosa foi lançada ao chão, enquanto o jovem rapaz reclamava pelo fato da mesma “não olhar por onde anda”.
Dentre as pessoas que passavam no local, poucas deram atenção ao fato. Tudo parece ter ocorrido numa dimensão paralela ao cotidiano daquelas pessoas.
Eu saia de portaria do prédio onde resido, mas ainda estava na “gaiola” que nos separa da “selva de pedra” e das “criaturas malignas lá de fora”.
Pude ver a cena por completo, até mesmo o comportamento do jovem que andava de bicicleta e que havia atropelado a senhora idosa, enquanto esta caminhava na calçada, diga-se, o devido lugar de pedestres, mas local inapropriado para veículos, inclusive os de duas rodas.
O jovem rapaz veio em minha direção e, olhando-me, atou a sua bicicleta na grade do prédio onde moro com uma corrente. Ficamos nos encarando. Eu com uma postura de reprovação à conduta do jovem e ele me encarando, talvez esperando que eu falasse alguma coisa, para quem sabe, se redimir ou até me agredir, nem que fosse verbalmente, pois sua postura sempre foi a de quem tivesse razão.
Confesso que tive uma vontade de falar algo, mas preferi ver a dinâmica dos fatos, considerando que já havia algumas pessoas ajudando a senhora idosa a se recuperar. Preferi ver a cena, como quem porta uma câmera e filma tudo.
Em primeiro plano, vi o jovem rapaz se comportar de maneira antissocial (como se não bastasse andar de bicicleta em cima da calçada – lugar de pedestres – e de atropelar uma pessoa, sem ao menos se desculpar, ainda por cima utilizou a grade de uma propriedade alheia sem, ao menos, pedir licença). Pude assistir, ao fundo, a senhora se recuperando, com a ajuda de alguns transeuntes solidários, e, mais ao fundo, o ritmo frenético das pessoas, com os automóveis adornando a paisagem naquele instante.
Naquele dia, acordei com um alto astral e havia prometido a mim mesmo que não me indignaria, seja com que coisa fosse, mesmo com um jovem imbecil que se acha com razão, ao transitar com sua bicicleta em cima de uma calçada e, além disso, causar danos a outras pessoas.
Outro dia, vi um jovem dar explicações no sentido de que “a gente anda com a bicicleta na calçada para não se arriscar junto aos carros”.
Tudo bem. Entendi. Ele não pode se arriscar junto aos carros, mas pode arriscar a integridade física de outras pessoas ao transitar com sua bicicleta em cima da calçada. É isso?
Voltando àquele dia, partia eu para a praia, a fim de “tirar o mofo” da semana. Mas, mesmo ante a promessa de não me indignar com as “coisas da vida cotidiana”, o atropelamento da senhora idosa mexeu comigo. Fiquei mais ligado às “coisas da vida cotidiana”.
De minha casa à praia, percorro três quarteirões. Naquele dia, enquanto me dirigia à praia, além de assistir a cena grotesca de um jovem numa bicicleta atropelar uma senhora idosa, enquanto esta andava na calçada, assisti um motoboy (figura urbana que se prolifera como pombo) fazendo o mesmo que o jovem ciclista. Só que desta vez, ao invés de uma bicicleta, era uma moto. E lá se ia o easy rider. Born to be wild!
Pude ainda, no trajeto, ver um carro avançar um sinal fechado, enquanto outro era estacionado por seu motorista em cima da faixa de pedestres.
Ao chegar à praia, coloquei-me em conforto, praticamente à beira do mar, com uma cadeira e uma barraca, enquanto o sol e o mar davam conta da bela paisagem. Sentei-me e fiquei ali, curtindo o sossego, a música em meu fone de ouvido e o jornal com suas notícias.
À beira do mar, pessoas passavam, pra lá e pra cá. Outras pessoas conversavam, liam revistas ou jornais, ou ainda curtiam o sol. Crianças brincavam na beira da água ou na faixa de areia próxima a ela.
Mas, havia um desarranjo à cena paradisíaca. Um grupo de jovens (meninos e meninas) jogavam bola, naquilo que se conhece popularmente como “altinho”.
Assim como transitar de bicicleta ou moto em cima da calçada, avançar um sinal fechado e estacionar veículo em cima da faixa de pedestres, jogar “altinho” à beira mar, pelo menos antes da tarde, nesta cidade, é considerado ilegal. Mas, talvez nem precisasse ser ilegal, pelo risco que representa, basta considerá-lo perigoso. Imagine se a bola acerta uma pessoa e, especialmente, a cabeça de uma criança?
Fiquei ali sentado, na minha cadeira de praia, observando a cena e me lembrei de tudo que havia visto naquele dia, ou seja: um jovem numa bicicleta atropelar uma senhora idosa, enquanto esta caminhava pela calçada; um homem transitando com sua moto em cima da calçada; um carro avançando um sinal fechado; outro carro sendo estacionado em cima da faixa de pedestres etc.
Lembrei-me também de duas pessoas idosas que, semanas antes, de maneira arrogante, reivindicaram prioridade nas filas de cinema e supermercado, respectivamente. Para mim, o fato de exigir direitos não implica em comportamento antissocial ou agressivo, inclusive por idosos.
Mas, pude ainda lembrar-me do jovem Rafael Mascarenhas, de 18 anos, filho da atriz Cissa Guimarães com o músico Raul Mascarenhas, que, ao andar de skate num túnel interditado para manutenção, numa madrugada, foi atropelado por um carro conduzido por outro jovem, Rafael Bussanra, de 25 anos.
As notícias narram conclusões policiais de que naquela madrugada, o veículo guiado por Rafael foi liberado por dois policiais militares que se encontravam próximo ao local do atropelamento, logo após o ocorrido, mediante o pagamento de propina, intermediada pela família de Rafael (vide, por exemplo, Jornal O Globo, de 20/07/2010, caderno Rio).
Diante daquele fato, perguntei-me como poderia uma família acobertar um delito cometido por um jovem, ainda que isso fosse feito “em nome do amor”. Será que acobertar um delito (no caso um homicídio, ainda que culposo, ou seja, sem a intenção de matar alguém) cometido por uma pessoa expressa esse “amor”?
Ora, amor não implica educação para a construção da responsabilidade nos filhos? Amor e impunidade se equivalem?
Pelo foi noticiado, preferiu-se dar uma graninha para que os policiais militares fizessem “vista grossa”.
Há uma série de possíveis motivos para a antropofagia que assola esta “sociedade civilizada”, adoradora de liberdades ilimitadas.
Há que se assumir que qualquer menção à palavra “limitação” ou “restrição”, ainda que mínima de liberdades individuais, em prol da harmonia coletiva, causa um arrepio nas pessoas. Talvez, a “geração reprimida” tenha oferecido “liberdade” demais aos seus pupilos, fazendo com estas mesmas “liberdades” se voltem contra seus beneficiários. Da ditadura à liberação geral. Da repressão à libertinagem.
Tal argumento pode parecer retrógrado, reacionário ou antiquado, uma vez que se desconsiderem fatos históricos e culturais em “sociedade civilizadas”, como a sociedade brasileira.
Ademais, não há como negar contribuições tecnológicas ao processo de socialização na dita pós-modernidade. Redes sociais como Orkut, Facebook, Twitter etc., além de contribuir na comunicação e informação, parecem sintetizar a sociedade narcísica e hedonista, onde o que importa é fama e prazer.
Cultua-se o corpo. Músculos e nádegas representam o novo padrão a ser seguido, adornado por tatuagens que, se outrora remetiam a uma identidade subversiva, atualmente servem de marca de identificação. Mas do que gravar a marca da tribo, talvez se pretenda como nunca marcar a história de cada um. De uma forma de totem a uma espécie de DNA, a afirmação do self.
Pode-se ainda ficar famoso com um pequeno filme no Youtube, por exemplo. Não há mais necessidade de produtor, diretor ou patrocinador. Basta uma câmera ou um aparelho celular na mão e uma ideia na cabeça e pronto: qualquer um pode ficar famoso. O engraçado, o grotesco, o aterrorizante, o erótico... Tudo vale numa “sociedade livre”.
A sociedade do eu e do agora é que vale. Talvez por isso seja mais difícil perceber o outro como sujeito de direitos. A interação com o outro se dá pelo prazer, ainda que virtualmente.
Outro possível motivo que pode ser atribuído as tantas “liberdades” é a escassez de atenção de pais com seus filhos.
Numa sociedade em que se vive uma escravidão pós-moderna, somos empurrados para o trabalho em tempo praticamente integral. Se por um lado, isso se dá pela necessidade de sustento de nossa família, por outro, havemos de reconhecer nosso desejo em sermos reconhecidos por familiares, pelos colegas de trabalho e pela sociedade. Não basta ser um bom profissional, temos que nos sentir (ou fazer com que os outros nos sintam como) “fora de série”, “excelentes” ou “imprescindíveis”. Ninguém que ser transformar (ou ser transformado) em objeto de descarte numa sociedade de consumo.
Ademais, o alto custo de vida, aliado ao medo de ser taxado de vagabundo, mesmo que por um breve momento de ócio, faz com que nos afastemos cada vez mais de nossos lares e de nossos entes.
E, muitos de nós, quando em casa, nos sentimos culpados em oferecer limites aos nossos jovens. “Puxa, passo o dia inteiro fora, trabalhando, e justamente agora que estou com ele, vou reprimi-lo”.
Esquecemo-nos do preceito básico de que “quantidade não é qualidade”. E que umas poucas horas de dedicação podem repercutir melhor do que horas de desprezo e desatenção.
Estes são alguns dos motivos que podem ser atribuídos para que nossos jovens se comportem tão narcisicamente e de maneira egoísta. Afinal, o narcisismo, o egoísmo e o hedonismo foram legados de outras gerações. Mas temos com tanta “liberdade” que sequer sabemos o que fazer de construtivo com ela.
Comportamentos individualistas aqui descritos podem simbolizar máximas como “o que importa é levar vantagem” ou “meu pirão primeiro”, ou ainda diferenciar “malandros e manés” e “corajosos e covardes”.
Diga-se, aliás, que qualquer atitude corajosa pode colocar em risco seu autor. Numa sociedade antropofágica, vence quem é mais forte ou quem possui a arma mais poderosa. Entre bancar o covarde e sair ileso, assim como teria feito Hans Staden, na presença dos índios Tupinambás, no século XVI, e ser corajoso e ter a carne devorada, justamente por isso, prefiro me calar, observar e escrever (capacidade muito além daqueles que enaltecem músculos e nádegas).
Pode parecer covardia, falta de postura ética ou de solidariedade. Contudo, numa sociedade antropofágica, deve-se avaliar todos os riscos de receber um tiro ou uma barra de ferro na cabeça, por uma simples discussão de trânsito.
Essa é a sociedade civilizada, dotada das maravilhas que somente liberdades ilimitadas podem proporcionar.
Que se pague o preço ou incorre-se no risco de ser devorado pelos canibais.

O SUBLIME NÃO SE RELACIONA COM O PATÉTICO


Por Verônica Malkah.


Ao meditar sobre essa frase - “o sublime não se relaciona com o patético”, tomei ciência de minha própria arrogância, da minha relação arrogante com o Sagrado.
O Sagrado não se relaciona com o que seja patético... e como somos patéticos na tentativa de nos relacionarmos com o Sagrado! Como somos medíocres, achando que o Sagrado nos deve a revelação e o esclarecimento de nossas angústias, o afastar de nossas dores e de todo e qualquer sofrimento. O Sagrado nos deve isso?
Achamos que podemos desbravar o Sagrado, penetrar em seus mistérios e que por sermos excelentes desbravadores (afinal, somos eruditos, estudiosos, temos uma boa capacidade de raciocínio), merecemos a recompensa da plenitude, da prosperidade, da sabedoria infinita, do final feliz para sempre.
O Sagrado não nos deve nada, o sublime não se aproxima da barganha, da chantagem, das falsas adorações e rezas.
Somos tão arrogantes espiritualmente que afastamos nossos próprios corpos da idéia de desenvolvimento, achando que apenas o intelecto nos abrirá as portas do paraíso.
Nos contentamos em “intelectualizar” sobre a vida e nos esquecemos que viver é correr riscos, é se abrir para o desconhecido, para aquilo que não controlamos, não sabemos, não prevemos. E, para anestesiar o medo infantil e imaturo da morte (pois para nós, o risco de nos abrirmos e sofrermos se equivale a morrer) nos dedicamos única e exclusivamente a sobreviver. E ainda exigimos que o Sagrado nos conceda uma sobrevivência próspera, com conforto, pouco trabalho e muito prazer...
Quem restringiu a relação com o Sagrado a essas míseras barganhas?
Se não estamos vivendo de acordo com as nossas vontades pessoais então nos lembramos do Sagrado e passamos a nos dedicar a uma pseudo espiritualidade: vamos às missas, rezamos, oramos, meditamos, compramos livros e talismãs, nos inscrevemos em cursos e palestras de gurus e mestres, dizemos ao universo o quanto desejamos a conexão com o Sagrado, quando na verdade desejamos apenas satisfazer nossas vontades pessoais.
Será que continuaríamos indo às missas, aos templos, às palestras, às rezas se soubéssemos que nada disso é garantia de afastarmos a dor e o sofrimento? Será que seríamos fiéis em nossa conduta espiritual se, de fato, percebêssemos que a despeito de toda essa dedicação o Sagrado continuaria a não nos dever nada?
Será que realmente sabemos o que é o Sublime ou nos relacionamos apenas com uma fantasia irreal sobre um ente que nos concede recompensas ou punições?
Se não houver uma profunda reflexão sobre essas questões e um grande esforço em identificar a forma contemporânea (rasa e superficial) de se aproximar do Sagrado, não conseguiremos eliminar os resíduos internos que nos impedem de saborear uma gloriosa experiência significativa (que não se confunde com uma experiência prazerosa ou de acordo com as nossas vontades).