sábado, 10 de abril de 2010

A FILA



Neste fim de semana, minha mulher, Anita, e eu estávamos em uma fila, no interior de um cinema localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, para assistir ao filme O Segredo de Seus Olhos (El Secreto de Tus Ojos), de Juan José Campanella.
Chegamos cedo ao cinema, compramos nossos ingressos e fomos a uma livraria no interior do próprio cinema. Se tivéssemos chegado ao cinema uns dez minutos mais tarde, provavelmente, não conseguiríamos adquirir os ingressos para o filme em tela.
Uma vez na fila, podemos observar o comportamento de pessoas próximas, como conversas alegres, aparições de personalidades cinematográficas (as quais compareceram para o lançamento de um outro filme) e pessoas pra lá e pra cá no saguão do cinema. Tivemos também a chance de presenciar alguns fatos curiosos, senão, lamentáveis ou que merecem reflexões.
Vimos pessoas reclamando do fato de, num sábado à tarde, num dia chuvoso, o cinema estar lotado. “A gente sai de casa, num sábado, esperando assistir a um filme tranquilamente, e se depara com um cinema lotado!” Um estresse, ao nosso sentir, desnecessário para quem se propõe a um lazer numa cidade grande.
Enquanto estávamos na fila, aguardando para ingressar na sala de projeções, uma mulher, aparentando uns quarenta e tanto ou cinqüenta anos de idade, tentou se colocar à nossa frente, naquilo que popularmente se chama “furar a fila”.
Percebemos que ela fez aquilo dissimuladamente, a fim de que não percebêssemos, mesmo que as poltronas fossem marcadas para cada espectador.
De uma maneira muito delicada, minha mulher informou a referida mulher que nós também estávamos na fila, aguardando nossa vez de entrar na sala, e que o fim da fila ficava um pouco mais atrás de nós.
Não sei se surpresa com a informação ou tentando bancar a esperta, a mulher ainda argumentou que “ela estava na fila, mas que havia ido falar com uns dos funcionários do cinema, com o intuito de saber qual era a sala em que passaria o filme O Segredo de Seus Olhos.
Minha mulher a explicou, ainda de maneira gentil, que nós também tínhamos falado com os tais funcionários do cinema, a fim de saber a resposta a mesma pergunta que a dela.
O detalhe é que, enquanto eu falava com um dos funcionários, minha mulher guardava meu lugar na fila, ao seu lado, para assistirmos ao filme. E a tal mulher sequer estiveram na fila anteriormente, como alegara.
Ou seja, além de “furar a fila”, a mencionada mulher tentou “se dar bem”, às nossas custas, ou aproveitar-se de nossa "ingenuidade".
Mas isso não foi tudo, pois quando a sala de projeções foi aberta para quem aguardavaa na fila, uma outra mulher, de cabelos grisalhos, passou bem a nossa frente, a toda velocidade (no exato momento em que estávamos prestes a apresentar nossos bilhetes), entregou seu bilhete a uma funcionário do cinema e, se falar uma palavra sequer, partiu rumo a seu assento.
Algumas pessoas podem até dizer: “Poxa, como esse casal esquenta a cabeça com bobagens!”No entanto, cabe esclarecer que em nenhum momento comportamento-nos de modo agressivo, por mais que tenhamos nos sentido ofendidos.
Mas, ofendidos por quê?
Conversamos (minha mulher e eu) e chegamos a algumas conclusões, entre elas, as seguintes:
A tentativa da “furar a fila” por parte da primeira mulher e a efetiva “furada de fila” por parte de outra nos remeteram à percepção de como as pessoas manifestam um comportamento hedonista (uma espécie de culto ao “eu”). Trata-se, pois, ainda que de uma maneira inconsciente, de dizer (numa linguagem não-verbal) que as outras pessoas não existem, na melhor das hipóteses.
Numa hipótese diversa, pode significar “eu sou mais importante que você, por isso, mesmo tendo chegado depois, vou passar a sua frente e que se dane”.
Isso, sem deixar de mencionar que os comportamentos das duas mulheres nos fizeram refletir para o fato de que, mesmo nos momentos de lazer, estamos correndo (ainda que não saibamos por quê ou pra que).
No caso da mulher de cabelos grisalhos, poder-se-ia considerar a prioridade de atendimento, uma vez que a mesma possuísse mais de sessenta anos de idade. Trata-se de um direito subjetivo dela e de um dever legal e ético da sociedade, nclusive nós.
Entretanto, ainda assim, pode-se crer que a distinta senhora dispensou uma oportunidade para demonstrar para a sociedade (a qual faz parte) que sua (talvez mísera)vida lhe valeu de aprendizagens valiosas, como o respeito aos outros, ainda que se exerça um direito.
Não se trata de mesquinhez ou sentimento de superioridade nossa, mas, cremos que dizer “com licença”, “por gentileza”, “por favor” e “obrigado” constituem manifestações nobres de se exercer um direito subjetivo e que, em nada enfraquece o exercício de tal direito ou diminuem uma pessoa perante as outras.
Fala-se muito sobre a “falta de educação dos jovens”, que seriam ainda “hedonistas”, “narcisistas” ou “presenteístas”. Mas, pelo que pudemos ver no cinema, neste fim de semana, nossas “pessoas maduras”, “velhas”, da “terceira idade” ou da “melhor idade”, como se quiser falar, não conseguiram ser mais “educadas”, “civilizadas” ou “socializadas” do que nossos jovens. Talvez tenham perdido várias chances, ao longo de suas respectivas vidas, de aprender e exercitar sentimentos valiosos para os seres humanos, tais como o respeito e a percepção do outro.Que pena.
Há ainda a questão da sustentabilidade da democracia, considerando a manutenção da ordem, eis que a premissa é simples: “quem chega primeiro, merece ser atendido primeiro”, ainda que se considerem as prioridades de atendimento a idosos, gestantes, mulheres com crianças de colo ou portadores de necessidades especiais ou deficientes físicos, como o linguajar “politicamente correto” prefira.
A permanência ou não numa fila – seja ela, em um estacionamento, banco, mercado ou cinema – pode refletir nosso modo de encarar a vida e os outros.
Existem, pois, valores subliminares, mas essenciais numa fila, muito mais do que um simples ordenamento de pessoas.
Em nenhum momento, procuramos brigar com as duas mulheres aqui aludidas, mas os seus comportamentos nos serviram de reflexão e a conclusão de que vamos continuar a respeitar as filas.
Afinal, sem sermos piegas, somos defensores da democracia, da cidadania e acreditamos que a delicadeza e o respeito ao outro só nos faz estar em comunhão com as outras pessoas. É o nosso religare.
É nossa maneira de ser feliz e de “amar ao outro como a nós mesmos”.