sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A "NOVA ORDEM": onde estão as vozes dissonantes?


(Foto: Micha Gordin)
Eles assumiram o Poder depois de décadas de espera. Finalmente, haviam conseguido tirar os outros do Poder, estabelecendo uma nova ordem.
Foram-se mais de meio século esperando uma oportunidade. Mas, agora, ela havia chegado.
Ao invés dos burgueses, o proletariado no Poder. Com isso, o novo governo seria a voz do povo. Marca da nova ordem, cuja palavra-chave era a ruptura com a antiga ordem. Todo Poder emana do Povo!
Mas, como estabelecer a nova ordem? Chegara a hora de tomar as rédeas nas mãos.
Aniquilar os membros da antiga ordem, os burgueses? Eliminar todos aqueles que de alguma maneira deram suporto à antiga ordem, incluindo os intelectuais?
Tanto a primeira como a segunda hipóteses foram experimentadas por outros regimes. Adotar um governo de terror poderia implicar uma onda reacionária. E, além disso, os membros da nova ordem não pretenderam assemelhar-se com a antiga ordem nem, muito menos, com regimes sanguinários. Afinal, os tempos são outros.
Queimar corpos, empalar pessoas e cortar cabeças tornaram-se hipóteses descartadas por aqueles que no momento chegavam ao Poder.
Ademais, a democracia havia se consolidado no país. Qualquer política ou instrumento que pudesse abalar a democracia poderia se tornar um argumento legítimo para reação da antiga ordem, inclusive com o apoio da ordem internacional.
No entanto, havia o desejo de fazer os membros da antiga ordem provarem o seu próprio veneno. Eles haviam usufruído do Poder por décadas, sem abrir qualquer possibilidade de participação das massas populares.
Além de tal desejo, havia o compromisso de se garantir a satisfação às massas, mediante a realização das promessas feitas na campanha eleitoral.
Ao invés de revanchismo, a nova ordem optou pela composição, ou seja, uma aproximação com a antiga ordem, ainda que isso se desse com todas as cautelas. O Poder é caro. E os membros da nova ordem conheciam o árduo caminho para se chegar ao Poder. Neste momento, o importante era agarrar o Poder com unhas e dentes. Perdê-lo, jamais!
A primeira medida foi alocar os membros da antiga ordem em postos dentro do novo Governo. Mas nada que pudesse colocar em risco o novo Poder, pois os membros da antiga ordem não gozavam de força numérica dentro das instituições. Até que tinha voz nestas instituições, mas o som de suas gargantas sempre seria abafado pela maioria, ligada à nova ordem.
De qualquer forma, a democracia estaria assegurada. Nenhuma violação aos direitos fundamentais dos cidadãos se assistiria no país, como outro se experimentou outrora.
Quanto àqueles que davam suporte ao antigo Governo, estes também foram alocados em cargos nas instituições públicas, quando não, também receberam atenção especial da nova ordem.
Aos intelectuais se propôs o atendimento de seus anseios. Alguns foram convidados a compor o novo Governo, enquanto outros passaram a receber condições favoráveis à realização de seus projetos. Por exemplo, um plano para a cultura foi imediatamente aprovado, com vistas abrir os cofres públicos para o financiamento de apresentações de artistas. O que antes cabia à iniciativa privada, enquanto uma típica manifestação burguesa, a partir deste momento, tornou-ser uma questão de Estado, personificado na figura de que governa. A premissa monárquica “L’Etat se moi” foi, ainda que implicitamente, adotada pela nova ordem.
Se por um lado, a ajuda aos intelectuais surtia os efeitos esperados sobre suas ações, por outro, também garantia a satisfação das massas. Estas massas passaram ater a chance de experimentar alguns eventos que pareciam distantes de suas realidades. Mas, as massas não tiveram a oportunidade de se aproximar de todas as manifestações culturais, eis que algumas eram destinadas a um público seleto; um público que podia pagar, considerando os altos preços das apresentações, e/ou um público composto de pessoas importantes politicamente. Às massas uma olhadela pela janela das casas de espetáculo, era o máximo que se via.
Seja como for, panis et circensis à plebe. Além do subsídio para que as massas pudessem ter o acesso mínimo às manifestações culturais foi reservado a elas um plano de ajuda, com o objetivo de matar sua fome, como a nova ordem fez questão de grifar, tanto em sua campanha eleitoral como na oportunidade em que assumiu o Poder.
Famílias na linha de pobreza e abaixo desta linha passaram a ter a chance de comer. “Pela primeira vez na história, um Governo se preocupou com os pobres de maneira efetiva”, diziam os membros da nova ordem.
Ao subir nos palanques, os membros da nova ordem bradavam palavras contra a antiga ordem, numa espécie de catarse, enquanto as massas aplaudiam e gritavam em coro ao que era dito naquele lugar. Linchava-se a antiga ordem como quem bate num boneco de Judas, durante o período que antecede a Semana Santa.
Aliás, diga-se que, a partir da nova ordem, havia um novo santo: o Presidente.
Com seu jeito carismático, tratou de implantar uma política de aproximação com os antigos rivais, nem que para isso fosse necessário abrir os cofres públicos ou alocar gente nas instituições públicas. E aqueles que até então eram contrários ao Governo, ou seja, à nova ordem, logo se viram como quem fica com a mão esticada, esperando uma esmola.
Neste contexto, todos pareciam satisfeitos. O Governo, os membros da antiga ordem, os intelectuais e as massas. Tudo caminhava nos rumos de uma nova ordem.
Entretanto, havia falhas e existiam os críticos a estas mesmas falhas. Pierre era um exemplo dos críticos à política do Governo, à vigência da nova ordem.
Dizia Pierre que os subsídios dados às massas poderiam até matar a sua fome, mas não eram suficientes para libertá-la da dominação estrutural que ainda vigorava, mesmo com a chegada da nova ordem. Para ele, era preciso fazer mais, como por exemplo, investir em educação, uma educação crítica e ecomplexa, com vistas a fomentar cidadões aptos a criticar as coisas e a percebê-las numa ótica de um jogo.
Em resposta às críticas de Pierre, os membros da nova ordem disseram que a libertação das massas se verificava mediante a adoção de programas sociais que lhes garantiria matar a fome e a qualificação para o mercado de trabalho, por intermédio de escolas técnicas, cuja proposta havia sido muito explorada durante a eleição.
Mas, Pierre contra argumentava, dizendo que a política de educação do atual Governo nada mais fazia do que reproduzir o modelo de atendimento ao mercado global de trabalho implementado pela antiga ordem.
As palavras de Pierre foram ganhando, de alguma maneira, vulto entre alguns seguimentos, entre eles, a classe média, sobre a qual recaíam todos os encargos com a política social do atual Governo. Para se custear o projeto governamental era necessário captar verba de algum lugar. E, naturalmente, as classes mais altas usufruíam de privilégios ou sabiam como se preservar da política de arrecadação do Governo.
Mas, as palavras de Pierre tornaram-se um inconveniente para a nova ordem. Estas palavras funcionavam como uma mosca insistente que vive a azucrinar uma pessoa, como um herege.
Como mosca, Pierre deveria ser abatido. Todavia, como dito, isso implicaria em reprodução da política de violação dos direitos fundamentais que antigamente vigiam no país. Com herege, melhor sorte lhe assistiria. Haveria ele de ser “corrigido”.
Mas, diante das insistentes críticas de Pierre, a nova ordem decidiu agir.
Pierre era professor em uma instituição pública de ensino. Logo de início, foi transferido para uma sede da instituição de ensino longe de sua casa. Passou a ter dificuldades de locomoção. Fisicamente, sentiu o desgaste com a longa viagem até seu novo local de trabalho. Financeiramente, Pierre também sentiu o impacto das viagens diárias em seu orçamento, mesmo porque seus vencimentos não aumentaram.
Diga-se, aliás, que o orçamento de Pierre sofreu impacto maior devido à recusa de financiamento de suas pesquisas com verbas públicas. Todos os projetos que apresentava aos órgãos de fomento eram recusados. Nunca mais conseguiu um financiamento para suas pesquisas e, com isso, viu-se também como um professor/pesquisador obsoleto, eis que seu currículo cada vez mais ficava defasado com relação aos seus colegas de profissão.
Um dia, Pierre fazia um lanche com Raymond num café da cidade e, aproveitando a ocasião, fez um desabafo.
Raymond era um dos raros amigos de Pierre (vários tinham lhe abandonado) e quem tinha intimidade suficiente para dizer a este último algumas “verdades”, por mais que estas doessem.
Ao ouvir o desabafo de Pierre, Raymond lhe disse:
– Meu querido amigo, já cansei de te dizer isso: Todos representam. Alguns mais, outros menos, dependendo do momento, do lugar e do público. Alguns assumem papéis principais, enquanto outros atuam como coadjuvantes. E quem não representa, sai de cena.
– E continuou: Mas você não aprendeu ainda.
Os caras finalmente chegaram ao Poder e trataram de ramificá-lo direitinho. A impressão que temos é que todo mundo está comprado ou com medo. A chamada oposição está satisfeita com aquilo que lhe foi oferecido pela nova ordem. Recebeu uns cargos pra calar a aboca e assim foi feito. A classe dos intelectuais foi silenciada. Ela ganhou um bocado de benesses pra ficar na dela. Lembra quando havia tortura neste país e os intelectuais se insurgiram? Além dos revolucionários da luta armada, tínhamos um grupo de pessoas que pintavam, cantavam e escreviam, manifestando-se contra a política do Governo de então. Já as massas... Estas sempre foram massa de manobra. Ela sempre foi composta por muitos, mas que não podiam voar...
Pierre interrompe a fala de Raymond e lhe questiona sobre ética.
– Ética, diz Raymond. A ética que vigora é a ética do Poder. Alguns são o centro, enquanto outros a periferia, mas todo mundo quer uma casquinha. Por que você acha que não existe mais oposição neste país, hein? Direita e esquerda são definições que nem mais cabem no nosso dicionário.
Os integrantes da antiga ordem se deram por satisfeitos com o que foi lhes oferecido. Os intelectuais calaram-se diante dos cofres abertos. Não há um artista ou pesquisador alinhado com o atual Governo, adepto da nova ordem, que não receba uma verbinha para suas apresentações ou seus projetos de pesquisa.
E as massas? Essas deliram com os subsídios dados pelo atual Governo. Elas finalmente podem fazer compras, mas não só de comida. Elas agora podem ir a uma loja e adquirir um aparelho de telefone celular de última geração, comprar uma televisão das mais caras, financiar um automóvel etc. Foram reconhecidas como consumidoras e elevadas à classe média. Um sonho...
Pierre novamente interrompe a fala de Raymond:
– Mas é sobre isso que eu justamente estou falando!
– Eu sei, diz Raymond. E acrescenta:
Mas, toda essa gente conseguiu fazer aquilo que você não fez: representar.
Ninguém se levanta contra a nova ordem, pois depende dela pra tudo. Pra continuar no Poder, ainda que de forma periférica, como coadjuvante; pra conseguir dinheiro para a carreira e pra pesquisas acadêmicas; e pra comprar, comprar e comprar.
Grande parte de seus colegas da instituição de ensino usam máscara. Estão de saco cheio dessa porcaria, mas fingem que está tudo bem. Afinal, quem quer perder a grana de um projeto, ficar de fora da patota?
Veja a Marie. Ela aproveitou a oportunidade e se colocou junto aos adeptos da nova ordem na instituição de ensino. É por isso que ela é agora a reitora. Sacou?
Quanto às massas, estas estão entorpecidas com a febre de consumo. Estão orgulhosas por terem saído da obscuridade social. Pelo menos, é o que elas acham.
As pessoas se acham cidadã porque podem comprar. Não percebem que se tornaram mais uma engrenagem na reestruturação do capital. Muito poucos conseguirão quebrar a estrutura de dominação. Vão continuar a serem porteiros, motoristas, balconistas e por aí vai. E agora com a globalização, o máximo que conseguiram atingir será um cargo de operador de telemarketing. Mudaram definições e atores, mas a estrutura continua a mesma. E o atual Governo nada mudou, apenas refinou a estrutura implantada pela antiga ordem.
E meu amigo – continua Raymond – nesta sociedade da nova ordem, o silêncio impera. A gente parece que vive num Big Brother. O grande irmão a todos observa; nada passa despercebido. E todo mundo vigia todo mundo. É a sociedade do medo!
O Poder se ramificou e o centro não se sustenta sem seus tentáculos, os quais estão entre nós. Você, por exemplo, acho que caiu em desgraça por seus próprios colegas de instituição lhe viraram a cara. Alguns não tiveram a sua coragem. Já outros funcionaram como delatores. Estes últimos aproveitaram o seu sacrifício pra subirem de cargo e, alguns, parecem que conseguiram.
E se você não representa direitinho, aí vem um cara e lhe diz: “Pierre, e com 100% dos votos do público você está eliminado”.
Por isso, meu querido amigo, fique em silêncio. E, se falar, fale bem baixinho... Mas, cuidado para quem você diz as coisas por aí.Não há mais lugar para o dissidente, para a resistência, para a oposição, para as vozes dissonantes. Não existe mais espaço para as inquietudes. A solidariedade acabou. Cada um pensa somente si mesmo. Cada um quer salvar a sua pele. A utopia acabou. Estamos em tempos sombrios travestidos de democracia. Essa é a nova ordem...