quarta-feira, 5 de novembro de 2008

VOZES

Após alguns acontecimentos, em especial nestas últimas décadas, como a eleição de Barak Obama para a presidência dos Estados Unidos, no dia 5 de novembro de 2008, me convenço que 1968 foi o ano que não terminou, se me permitem parafrasear a expressão de Zuenir Ventura.
O ano de 1968 foi um ano marcante para a história mundial, a sua agitação nas esferas política e social.
O ano já começou com a Primavera de Praga, um levante tcheco contra a denominada Cortina de Ferro, pacto político-militar sob a liderança da então União Soviética (URSS). O referido movimento se iniciou em janeiro de 1968 com a eleição de Alexander Dubček, tendo sido sufocado em agosto daquele mesmo ano.
Em abril de 1968, assistimos o assassinato de Martin Luther King, um dos líderes do movimento negro (ou afro-americano, ou afro-descendente, sei lá) na luta pela afirmação dos chamados Direitos Civis, que somente seriam reconhecidos por uma lei assinada pelo então Presidente Lyndon Johnson, após a morte do reverendo que “tinha um sonho” (“I have a dream...”, ele já havia pronunciado).
Naquele mesmo mês, o mundo veria com olhos bem arregalados o filme 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, que colocou na mente dos espectadores uma incógnita acerca do futuro.
Paris amanheceu no dia 2 com o Mai 1968, um movimento iniciado por estudantes de Sorbonne e Nanterre contra o status quo, mas logo seguidos por funcionários públicos, operários, bancários, ambientalistas, feministas, entre outros seguimentos.
“Sejam realistas, exijam o impossível” constituiu um dos lemas de um tempo que se protestava contra a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, a pobreza, o capitalismo, a opressão, o autoritarismo, etc.
Em 25 de julho, o Papa Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae, que condenava o uso de anticoncepcionais, importando aqui registrar que tal publicação ia de encontro aos anseios das mulheres por igualdade de direitos em relação aos homens, como direito ao trabalho, remuneração paritária ao sexo masculino, e, destacadamente, a autonomia nas questões sexuais, inclusive a contracepção.
No dia 26 de julho de 1968, ocorreu a Passeata dos Cem Mil, como mais tarde ficou conhecida, num contexto de ditadura militar, cuja característica altamente repressiva já se havia visto na morte do estudante Edson Luis de Lima Souto, de 16 anos de idade, executado por um policial militar com um tiro no peito, no restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro.
O movimento contou com a participação de estudantes, artistas, intelectuais, políticos, advogados, entre outros. Significou a voz da sociedade contra o autoritarismo e a truculência.
Dias depois o referido evento, o deputado Márcio Moreira Alves proferiu um discurso criticando os militares que se encontravam no Poder, desde o golpe à democracia em 1964. Este fato despertou a indignação dos militares, culminando com a edição, em 13 de dezembro de 1968, do Ato Institucional n° 5, pelo então presidente Costa e Silva, em represália a não-cassação do mandato do mencionado deputado pelo Congresso Nacional
Na prática, o AI-5, como ficou conhecido, fechava o Congresso Nacional, cassava mandatos e direitos políticos, estabelecia a censura prévia sobre os meios de comunicação e sobre obras cênicas, cinematográficas, literárias e musicais, além de suspender o habeas corpus, o que consolidando o começo de um dos períodos mais nefastos da história nacional – os Anos de Chumbo.
O ano de 1968 se encerraria com os Estados Unidos da América numa posição delicada na Guerra do Vietnã, sobretudo após a Ofensiva Tet (ataque a parte sul do país no ano novo vietnamita), a invasão da Embaixada por vietcongs (simpatizantes do governo comunista do Vietnã do Norte) e o massacre da população civil no vilarejo de My Lai. A opinião pública e os movimentos estudantis trataram de sinalizar a reprovação da permanência das tropas norte-americanas no conflito no sudeste asiático.
Vivíamos a Era de Aquários, assistindo Yellow Submarine da banda inglesa The Beatles, ouvindo Lucy and the Sky with Diamonds (basta perceber a abreviatura LSD para saber do que se trata), Let’s get together, do The Youngbloods, e É proibido proibir, do Caetano Veloso.
Passados quarenta anos, estamos à beira do encerramento de mais um ano, cujas repercussões de 1968 ainda podem ser sentidas.
Os Estados Unidos da América e o Mundo amanheceram no dia 5 de novembro de 2008 com o primeiro presidente negro (ou afro-americano, ou afro-descendente) da história daquele país, portanto, quarenta anos depois do assassinato de Martin Luther King, na cidade de Memphis, Tenneessee.
Desde a primeira exibição nos cinemas de 2001: uma odisséia no espaço, especialmente a partir da (neo) globalização iniciada no final da década de 1970, e muito sentida nos dias atuais, o mundo se agita, dada a velocidade e volatilidade de conceitos e paradigmas típicos de uma sociedade em rede (conforme expressão utilizada por Manuel Castells). A tecnologia da informação “move muito rápido o chão bem embaixo de nossos pés”, provocando um sentimento coletivo de insegurança: “de onde viemos, onde estamos, para onde vamos?”
As mulheres ainda continuam a busca de seu legítimo espaço na sociedade, mas agora imbuídas de uma concentração estafante, verificada pelo papel simultâneo de mãe, esposa, dona de casa e profissional. Nesta era de qualidade total, a integridade física e moral, contracepção, dignidade na vida provada e no trabalho ainda constituem pauta do sexo feminino.
Se antes a Igreja se manifestava contrária à contracepção, quarenta anos depois critica a utilização de células embrionárias, ou células-tronco, o que para muitos significa a esperança de prevenção, reabilitação e cura de doenças e limitações físicas.
Um assunto tão polêmico que forçou o Superior Tribunal de Justiça (STF), a Suprema Corte nacional, a promover um debate público e a julgar a constitucionalidade ou não da utilização das células aqui mencionadas, cujo relator foi o Ministro Carlos Ayres de Brito.
O Brasil caminha para o final do segundo mandato do primeiro Presidente da República proletário de sua história. Sem que se faça qualquer comentário sobre as conquistas e os prováveis retrocessos de Luís Inácio Lula da Silva enquanto Presidente da República, neste momento merece ênfase o simbolismo que a chegada de um Presidente “popular” exerceu e ainda exerce sobre a nação.
Da mesma sorte, a América Latina, especialmente em países como Bolívia e Venezuela, parece haver a liberação das “vozes emudecidas a partir da década de 1960”. Sem entrar no mérito se os governos de tais países seriam benéficos ou não, cabe assinalar a crítica ao (neo) colonialismo e às intervenções estrangeiras em assuntos externos. A Revolução Cubana de 1959 permanece como fonte inspiradora, mesmo que o governo cubano seja considerado por muitos como um “esqueleto”, dadas as crises conjunturais da ilha caribenha e as modificações sofridas pelo regime. Tratar-se-iam, pois, de movimentos pela afirmação do direito á soberania nacional e à autodeterminação.
Em agosto de 2008, tropas russas invadiram a República da Geórgia, devido à questões envolvendo a província da Ossétia do Sul, fazendo-nos lembrar da invasão das tropas do chamado Pacto de Varsóvia, lideradas pela União Soviética (URSS), na Tchecoslováquia, em agosto de 1968.
Durante as eleições realizadas para o cargo de Prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Fernando Gabeira, ex-integrante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (o MR-8, como ficou conhecido), e candidato pela coligação PV, PSDB e PPS, denominada Frente Carioca, chegou ao segundo turno com um número expressivo de votos em várias partes do município. Perdeu a eleição no segundo turno para o candidato Eduardo Paes, do PMDB, por uma margem inferior a dois por centos de diferença.
O mais surpreendente é que Fernando Gabeira optou por aquilo que se chamou de campanha limpa, ou seja, não utilizou anúncios publicitários como cartazes (banners e outdoors), nem panfletos (“santinhos”), preservando a cidade livre da poluição ambiental e visual. Entretanto, sua candidatura, ao que comentam, sinaliza o início de uma nova era na política nacional.
No final de outubro de 2008, mobilizados basicamente pela rede mundial de computadores (internet) milhares de pessoas (em sua grande maioria, jovens estudantes) organizaram e realizaram um movimento no centro da cidade do Rio de Janeiro, com concentração na Cinelândia e uma passeata até a sede do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), na Avenida Churchill, erguendo suas vozes em protesto ao que chamaram de “falta de ética e transparência no processo eleitoral e violação da democracia”.
Um negro Presidente dos Estados Unidos da América, um Presidente da República proletário no Brasil, movimentos nacionalistas na América Latina, tropas russas invadem uma República independente, mulheres em casa e nas ruas, estudantes nas ruas e um ex-revolucionário quase Prefeito da cidade do Rio de Janeiro. As vozes de 1968 ainda parecem ecoar pelo planeta, inclusive no Brasil, mesmo decorridos quarenta anos. Será que alguém consegue ouvi-las?

Foto da Passeata dos Cem Mil de Evandro Teixeira.