segunda-feira, 5 de julho de 2010

FUTEBOL NÃO É SÓ UM JOGO.


No dia 2 de julho de 2010, a seleção brasileira de futebol foi derrotada pela equipe holandesa, por 2 a 1, de virada, ficando de fora da luta pelo título da Copa do Mundo, realizada na África do Sul.
Não tardaria muito para que, logo após a partida válida pelas quartas-de-final da Copa do Mundo, críticas surgissem tanto da imprensa como por parte do público, remetendo a premissa que “o importante é ganhar”, ainda que uma equipe de futebol não consiga desenvolver o jogo mais bonito entre as quatro linhas.
São raras as experiências de seleções de futebol que, mesmo eliminadas das Copas do Mundo, conseguiram um lugar de honra no meio aos derrotados. A Hungria de 1954, a Holanda de 1974 e o Brasil de 1982 sintetizam o brilho de equipes que conseguiram, mesmo não vencendo a Copa do Mundo, um lugar honroso na história.
Mas, no caso brasileiro, gera dúvida a preferência pelas seleções das Copas do Mundo de 1982, que não venceu a referida competição, e a seleção de 1994, por exemplo. Futebol bonito ou de resultado, o que vale mais? A dúvida ainda persiste.
Argentinos, uruguaios, alemães, italianos, franceses e ingleses naturalmente também tem suas dúvidas quanto às seleções e no tocante à eficiência ou beleza do futebol jogado por suas respectivas seleções. A seleção argentina “perdedora” de 1994 jogava um futebol mais bonito que a campeã de 1978? A seleção italiana de 1970, mesmo tendo sucumbido ante o time brasileiro daquele ano, jogava melhor do que a campeã de 1982? E a seleção francesa de 1982 foi melhor do que a de 1998?
É claro que, quando há a conquista de um título mundial em jogo e a contribuição de craques como Maradona, Paolo Rossi e Zidane no intento, um peso maior se dá a seleção de futebol em questão.
Por falar em craques, existe a disputa entre os povos de quem teria sido o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Pelé ou Maradona?
E até mesmo no plano doméstico este dilema persiste. Entre os franceses, por exemplo, reina a dúvida de quem teria sido o maior jogador daquele país. Platini ou Zidane?
Se o que importa é resultado, Zidane parece possuir uma vantagem, ainda que ligeira, sobre Platini.
A disputa entre Pelé e Maradona ao título de Deus do futebol (vale até lembrar que o segundo inclusive possui adeptos em uma igreja – a Igreja Maradoniana), trata de colocar outros grandes craques, tais como Beckenbauer, Bobby Charlton, Bobby Moore, Cruyff, Puskas, Di Stefano, Eusébio, Garrincha, Roberto Baggio, Platini, Zidane, Zico etc., senão na berlinda, num patamar inferior, de "semideuses" ou, quiçá, de "simples mortais".
Mas, voltando à eliminação da equipe brasileira da Copa do Mundo de 2010, uma coisa chamou a atenção: o fato de alguns meios de comunicação, jornalistas e até mesmo parte do público se utilizar de um eufemismo para aliviar o sentimento de decepção ou dor pela eliminação da equipe canarinho da competição em tela.
A expressão “é só um jogo de futebol” como uma espécie de analgésico para aplacar a dor ou a fúria dos torcedores brasileiros pela eliminação de sua seleção foi dita na televisão por várias vezes e escrita em jornais.
No caso argentino, por exemplo, parte da imprensa local foi menos condescendente, cabendo ao público o acaloramento de sua seleção, mesmo com uma derrota acachapante para a equipe alemã. Uma derrota de 4 a 0.
Tudo bem. Pode-se crer que a eliminação de uma seleção nacional de futebol de uma Copa do Mundo não mereça ser tratada como um (quase) crime, assim como fizeram com as seleções brasileiras de 1974 e 1990, as italianas de 1966, 2002 e 2010, e as francesas de 2002 e 2010. Isso, sem deixar de mencionar a seleção nigeriana, punida pelo governo pela eliminação da Copa do Mundo de 2010, e equipe do Zaire de 1974. Zaire, aliás, que sequer existe mais, tendo sido substituído na ordem mundial pela República Democrática do Congo.
Mas, cabe licença àqueles que acreditam que “é só um jogo”. Trata-se de muito mais do que somente um “jogo”.
O futebol é uma (quase) religião, conforme já foi reconhecido pela Intelligentsia (academia, imprensa, intelectuais e políticos) e pelo público em geral. Há até quem diga se tratar de um “ópio do povo”.
Se Maquiavel conhecesse o futebol e seu impacto na mente coletiva, muito provavelmente teria recomendado o esporte à política do conquistador virtuoso. Panis et circensis a plebe. Foi assim que governos ditatoriais exploraram o esporte. Quem pode se esquecer, por exemplo, do sorriso do general Jorge Videla ao entregar o troféu FIFA a Daniel Passarella, capitão da seleção argentina, logo após a vitória na partida final contra a Holanda, em 1978.
E os campeonatos nacionais também servem a este propósito. No Brasil, por exemplo, o campeonato nacional de futebol com um número excessivo de clubes foi a tônica da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e, depois, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), para “agradar” geral e manter as mentes e corações ocupados, entorpecidos. Isso somente mudou com a redemocratização do país e com a rebeldia do chamado Clube dos Treze, em 1987.
O futebol é mágico e trágico, ainda mais quando disputado para e em uma Copa do Mundo.
Como esquecer o conflito fora e dentro de campo que envolveu El Salvador e Honduras, em 1969, por ocasião da disputa por fronteira e por uma vaga na Copa do Mundo do México, no ano seguinte? A Guerra do Futebol (Football War) entrou para a história.
Como esquecer a “divisão de águas” promovida pela seleção brasileira de Pelé, Gérson, Tostão, Jairzinho, Carlos Alberto Torres, Rivelino e cia., campeã da Copa do Mundo de 1970? Mas, consideram-se também as contribuições das seleções da Holanda 1974 e da Itália de 1982, para o bem e o mal do “futebol arte”.
Como esquecer as “zebras” galopando pelos gramados, ou, recorrendo-se à metáfora religiosa, numa reconstrução da contenda entre David e Golias? Coreia do Norte 2 x Itália 1 (1966), Espanha 1 x Honduras 1 (1982), Argélia 2 x Alemanha Ocidental 1 (1982) e Camarões 1 x Argentina 0 (1990) são alguns exemplos bíblicos do futebol nas Copas do Mundo.
Como esquecer as disputas entre los hermanos sudamericanos Brasil e Argentina, em 1974, 1978 e 1990?
Como não lembrar a importância da vitória da seleção argentina de Maradona sobre o English Team de 1986, considerando que os dois países travaram um conflito bélico pela posse da Ilhas Malvinas ou Falklands? Maradona fez com a zaga inglesa aquilo que os Harriers da Rainha Mãe, ou por que não dizer de Margareth Tatcher (A Dama de Ferro), fizeram com a Armada argentina em 1982.
Da mesma sorte, não se pode esquecer partidas como aquela realizada em 1974, entre Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental, que terminou com a vitória da segunda por 1 a zero. Guerra Fria!
As "duas Alemanhas" somente se reunificariam em novembro de 1989, após a queda do Muro de Berlim.
E que dizer de embates épicos, como Alemanha Ocidental x Hungria (1954), Inglaterra x Alemanha Ocidental (1966), Brasil x Inglaterra (1970), Alemanha Ocidental x Holanda (1970), Brasil x Itália (1982) e Alemanha Ocidental x França (1982), entre outros. Guerra entre Deuses!
A magia do futebol se manifesta, especialmente numa Copa do Mundo, quando acontece um duelo entre (semi) deuses. Pelé x Bobby Moore, Cruyff x Beckenbauer etc.
É o futebol que exprime o holocausto e a catarse do público, num alívio coletivo de milhões de pessoas, graças às vítimas sacrificiais. Bodes expiatórios e cordeiros imolados para aplacar a fúria dos Deuses!
O futebol também permite o ressurgimento das cinzas de figuras dionisíacas como Ronaldo, “morto” desde a véspera da partida final contra a França, em 1998, e “ressuscitado” na Copa do Mundo de 2002. Favorece a ascensão de entes ao Olimpo, como Pelé e Maradona, ou a ida ao inferno, como aconteceu com o goleiro brasileiro Barbosa, após a derrota do selecionado brasileiro para a equipe uruguaia (a celeste olímpica), na final da Copa do Mundo de 1950, num fenômeno conhecido como Maracanaço (a tragédia do Maracanã que silenciou aproximadamente 200 mil pessoas), e, recentemente, com o meiocampista Felipe Melo, expulso nas partidas contra Portugal e Holanda, na Copa de 2010.
E, além disso tudo, o futebol permite a comunhão orgânica e religiosa entre os homens, para além dos moldes contratualistas da modernidade e de padrões mecânicos e burocráticos. Vê-se isso nas peladas nos campos de areia, barro, cimento ou grama, nos jogos de botão e nas trocas de figurinhas. Figurinhas, compartilhadas por meninos e meninas, homens e mulheres, como verdadeiras hóstias dominicais.
Com a devida licença àqueles que acham que tratar-se de “só um jogo”. Mas, é muito mais do que isso. O futebol sintetiza o sagrado e o profano, o tribal e o hedonista, o solidário e o egoísta.
O futebol revela a essência humana; o homem tomado em sua complexidade. Reconhece-se, pois, o homo erectus, homo faber, homo habilis, homo regilious, homo æestheticus, homo æconomicus, homo politicus, homo sapiens e o homo futebolensis.
Portanto, perdoem-me, mas futebol é muito mais do que “só um jogo”.

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