quarta-feira, 4 de agosto de 2010

ANTROPOFAGIA


Outro dia, pela manhã, ao sair de casa, me deparei com a seguinte cena: uma senhora idosa caminhava pela calçada quando foi atropelada por um jovem montado numa bicicleta, enquanto trafegava pela calçada, em alta velocidade. Após ser atingida, a senhora idosa foi lançada ao chão, enquanto o jovem rapaz reclamava pelo fato da mesma “não olhar por onde anda”.
Dentre as pessoas que passavam no local, poucas deram atenção ao fato. Tudo parece ter ocorrido numa dimensão paralela ao cotidiano daquelas pessoas.
Eu saia de portaria do prédio onde resido, mas ainda estava na “gaiola” que nos separa da “selva de pedra” e das “criaturas malignas lá de fora”.
Pude ver a cena por completo, até mesmo o comportamento do jovem que andava de bicicleta e que havia atropelado a senhora idosa, enquanto esta caminhava na calçada, diga-se, o devido lugar de pedestres, mas local inapropriado para veículos, inclusive os de duas rodas.
O jovem rapaz veio em minha direção e, olhando-me, atou a sua bicicleta na grade do prédio onde moro com uma corrente. Ficamos nos encarando. Eu com uma postura de reprovação à conduta do jovem e ele me encarando, talvez esperando que eu falasse alguma coisa, para quem sabe, se redimir ou até me agredir, nem que fosse verbalmente, pois sua postura sempre foi a de quem tivesse razão.
Confesso que tive uma vontade de falar algo, mas preferi ver a dinâmica dos fatos, considerando que já havia algumas pessoas ajudando a senhora idosa a se recuperar. Preferi ver a cena, como quem porta uma câmera e filma tudo.
Em primeiro plano, vi o jovem rapaz se comportar de maneira antissocial (como se não bastasse andar de bicicleta em cima da calçada – lugar de pedestres – e de atropelar uma pessoa, sem ao menos se desculpar, ainda por cima utilizou a grade de uma propriedade alheia sem, ao menos, pedir licença). Pude assistir, ao fundo, a senhora se recuperando, com a ajuda de alguns transeuntes solidários, e, mais ao fundo, o ritmo frenético das pessoas, com os automóveis adornando a paisagem naquele instante.
Naquele dia, acordei com um alto astral e havia prometido a mim mesmo que não me indignaria, seja com que coisa fosse, mesmo com um jovem imbecil que se acha com razão, ao transitar com sua bicicleta em cima de uma calçada e, além disso, causar danos a outras pessoas.
Outro dia, vi um jovem dar explicações no sentido de que “a gente anda com a bicicleta na calçada para não se arriscar junto aos carros”.
Tudo bem. Entendi. Ele não pode se arriscar junto aos carros, mas pode arriscar a integridade física de outras pessoas ao transitar com sua bicicleta em cima da calçada. É isso?
Voltando àquele dia, partia eu para a praia, a fim de “tirar o mofo” da semana. Mas, mesmo ante a promessa de não me indignar com as “coisas da vida cotidiana”, o atropelamento da senhora idosa mexeu comigo. Fiquei mais ligado às “coisas da vida cotidiana”.
De minha casa à praia, percorro três quarteirões. Naquele dia, enquanto me dirigia à praia, além de assistir a cena grotesca de um jovem numa bicicleta atropelar uma senhora idosa, enquanto esta andava na calçada, assisti um motoboy (figura urbana que se prolifera como pombo) fazendo o mesmo que o jovem ciclista. Só que desta vez, ao invés de uma bicicleta, era uma moto. E lá se ia o easy rider. Born to be wild!
Pude ainda, no trajeto, ver um carro avançar um sinal fechado, enquanto outro era estacionado por seu motorista em cima da faixa de pedestres.
Ao chegar à praia, coloquei-me em conforto, praticamente à beira do mar, com uma cadeira e uma barraca, enquanto o sol e o mar davam conta da bela paisagem. Sentei-me e fiquei ali, curtindo o sossego, a música em meu fone de ouvido e o jornal com suas notícias.
À beira do mar, pessoas passavam, pra lá e pra cá. Outras pessoas conversavam, liam revistas ou jornais, ou ainda curtiam o sol. Crianças brincavam na beira da água ou na faixa de areia próxima a ela.
Mas, havia um desarranjo à cena paradisíaca. Um grupo de jovens (meninos e meninas) jogavam bola, naquilo que se conhece popularmente como “altinho”.
Assim como transitar de bicicleta ou moto em cima da calçada, avançar um sinal fechado e estacionar veículo em cima da faixa de pedestres, jogar “altinho” à beira mar, pelo menos antes da tarde, nesta cidade, é considerado ilegal. Mas, talvez nem precisasse ser ilegal, pelo risco que representa, basta considerá-lo perigoso. Imagine se a bola acerta uma pessoa e, especialmente, a cabeça de uma criança?
Fiquei ali sentado, na minha cadeira de praia, observando a cena e me lembrei de tudo que havia visto naquele dia, ou seja: um jovem numa bicicleta atropelar uma senhora idosa, enquanto esta caminhava pela calçada; um homem transitando com sua moto em cima da calçada; um carro avançando um sinal fechado; outro carro sendo estacionado em cima da faixa de pedestres etc.
Lembrei-me também de duas pessoas idosas que, semanas antes, de maneira arrogante, reivindicaram prioridade nas filas de cinema e supermercado, respectivamente. Para mim, o fato de exigir direitos não implica em comportamento antissocial ou agressivo, inclusive por idosos.
Mas, pude ainda lembrar-me do jovem Rafael Mascarenhas, de 18 anos, filho da atriz Cissa Guimarães com o músico Raul Mascarenhas, que, ao andar de skate num túnel interditado para manutenção, numa madrugada, foi atropelado por um carro conduzido por outro jovem, Rafael Bussanra, de 25 anos.
As notícias narram conclusões policiais de que naquela madrugada, o veículo guiado por Rafael foi liberado por dois policiais militares que se encontravam próximo ao local do atropelamento, logo após o ocorrido, mediante o pagamento de propina, intermediada pela família de Rafael (vide, por exemplo, Jornal O Globo, de 20/07/2010, caderno Rio).
Diante daquele fato, perguntei-me como poderia uma família acobertar um delito cometido por um jovem, ainda que isso fosse feito “em nome do amor”. Será que acobertar um delito (no caso um homicídio, ainda que culposo, ou seja, sem a intenção de matar alguém) cometido por uma pessoa expressa esse “amor”?
Ora, amor não implica educação para a construção da responsabilidade nos filhos? Amor e impunidade se equivalem?
Pelo foi noticiado, preferiu-se dar uma graninha para que os policiais militares fizessem “vista grossa”.
Há uma série de possíveis motivos para a antropofagia que assola esta “sociedade civilizada”, adoradora de liberdades ilimitadas.
Há que se assumir que qualquer menção à palavra “limitação” ou “restrição”, ainda que mínima de liberdades individuais, em prol da harmonia coletiva, causa um arrepio nas pessoas. Talvez, a “geração reprimida” tenha oferecido “liberdade” demais aos seus pupilos, fazendo com estas mesmas “liberdades” se voltem contra seus beneficiários. Da ditadura à liberação geral. Da repressão à libertinagem.
Tal argumento pode parecer retrógrado, reacionário ou antiquado, uma vez que se desconsiderem fatos históricos e culturais em “sociedade civilizadas”, como a sociedade brasileira.
Ademais, não há como negar contribuições tecnológicas ao processo de socialização na dita pós-modernidade. Redes sociais como Orkut, Facebook, Twitter etc., além de contribuir na comunicação e informação, parecem sintetizar a sociedade narcísica e hedonista, onde o que importa é fama e prazer.
Cultua-se o corpo. Músculos e nádegas representam o novo padrão a ser seguido, adornado por tatuagens que, se outrora remetiam a uma identidade subversiva, atualmente servem de marca de identificação. Mas do que gravar a marca da tribo, talvez se pretenda como nunca marcar a história de cada um. De uma forma de totem a uma espécie de DNA, a afirmação do self.
Pode-se ainda ficar famoso com um pequeno filme no Youtube, por exemplo. Não há mais necessidade de produtor, diretor ou patrocinador. Basta uma câmera ou um aparelho celular na mão e uma ideia na cabeça e pronto: qualquer um pode ficar famoso. O engraçado, o grotesco, o aterrorizante, o erótico... Tudo vale numa “sociedade livre”.
A sociedade do eu e do agora é que vale. Talvez por isso seja mais difícil perceber o outro como sujeito de direitos. A interação com o outro se dá pelo prazer, ainda que virtualmente.
Outro possível motivo que pode ser atribuído as tantas “liberdades” é a escassez de atenção de pais com seus filhos.
Numa sociedade em que se vive uma escravidão pós-moderna, somos empurrados para o trabalho em tempo praticamente integral. Se por um lado, isso se dá pela necessidade de sustento de nossa família, por outro, havemos de reconhecer nosso desejo em sermos reconhecidos por familiares, pelos colegas de trabalho e pela sociedade. Não basta ser um bom profissional, temos que nos sentir (ou fazer com que os outros nos sintam como) “fora de série”, “excelentes” ou “imprescindíveis”. Ninguém que ser transformar (ou ser transformado) em objeto de descarte numa sociedade de consumo.
Ademais, o alto custo de vida, aliado ao medo de ser taxado de vagabundo, mesmo que por um breve momento de ócio, faz com que nos afastemos cada vez mais de nossos lares e de nossos entes.
E, muitos de nós, quando em casa, nos sentimos culpados em oferecer limites aos nossos jovens. “Puxa, passo o dia inteiro fora, trabalhando, e justamente agora que estou com ele, vou reprimi-lo”.
Esquecemo-nos do preceito básico de que “quantidade não é qualidade”. E que umas poucas horas de dedicação podem repercutir melhor do que horas de desprezo e desatenção.
Estes são alguns dos motivos que podem ser atribuídos para que nossos jovens se comportem tão narcisicamente e de maneira egoísta. Afinal, o narcisismo, o egoísmo e o hedonismo foram legados de outras gerações. Mas temos com tanta “liberdade” que sequer sabemos o que fazer de construtivo com ela.
Comportamentos individualistas aqui descritos podem simbolizar máximas como “o que importa é levar vantagem” ou “meu pirão primeiro”, ou ainda diferenciar “malandros e manés” e “corajosos e covardes”.
Diga-se, aliás, que qualquer atitude corajosa pode colocar em risco seu autor. Numa sociedade antropofágica, vence quem é mais forte ou quem possui a arma mais poderosa. Entre bancar o covarde e sair ileso, assim como teria feito Hans Staden, na presença dos índios Tupinambás, no século XVI, e ser corajoso e ter a carne devorada, justamente por isso, prefiro me calar, observar e escrever (capacidade muito além daqueles que enaltecem músculos e nádegas).
Pode parecer covardia, falta de postura ética ou de solidariedade. Contudo, numa sociedade antropofágica, deve-se avaliar todos os riscos de receber um tiro ou uma barra de ferro na cabeça, por uma simples discussão de trânsito.
Essa é a sociedade civilizada, dotada das maravilhas que somente liberdades ilimitadas podem proporcionar.
Que se pague o preço ou incorre-se no risco de ser devorado pelos canibais.

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