segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

SER E TEMPO EM HEIDEGGER: e os meus gametas?


                                                                                                                            
És um senhor tão bonito 
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo

Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo... (Trecho da canção "Oração ao Tempo", de Caetano Veloso)

O presente trabalho decorre das exposições por parte do docente responsável pela disciplina Seminário de Leitura em Metafísica, prof. Écio Pisetta, no curso de filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), no segundo semestre do ano de 2013.
O foco de leitura se deu sobre a obra O conceito de tempo, de Martin Heidegger, a partir de uma conferência sua, pronunciada em julho de 1924, para a Sociedade de Teólogos de Marburgo, Alemanha.
Interessa consignar que minha atenção neste curso veio, em alguma medida, se deu ao encontro de minha experiência com relação às minhas filhas – Alice e Sofia, nascidas no último dia 06 de dezembro do corrente ano.
Devido à vulnerabilidade de meus gametas (espermatozoides), minha mulher e eu submetemo-nos a um procedimento conhecido como reprodução assistida, mediante fertilização in vitro. E, uma vez gerados os embriões, os mesmos foram guardados numa clínica especializada, por intermédio de uma técnica de criopreservação ou crioconservação, ou seja, a preservação de células, tecidos e embriões em temperatura em torno de – 196º C, geralmente, com o uso de nitrogênio líquido.
Tal procedimento se deu no início do ano de 2012, o que, considerando que entre a fertilização de gameta reprodutivo feminino – óvulo – e o nascimento de um ser humano com vida normalmente se dá em nove meses, ou entre 37 e 42 semanas, colocou-me frente a algumas questões, entre as quais eu destaco a seguinte: o tempo de minhas filhas não é o meu tempo.
Isso porque: 1. O tempo de gestação (extra e intrauterina) de minhas filhas ultrapassou o tempo convencional, posto que durou um total de 19 meses, até o nascimento de ambas. 2. Optamos por introduzir os embriões que dariam origem às nossas filhas em abril de 2013, mas, poderíamos fazê-lo no ano seguinte, mais a frente ou até daqui a uma década. Até aquele momento, não havia (e talvez ainda não haja) algo que nos obrigue a proceder a inserção imediata de embriões fertilizados no útero de minha mulher, ou de qualquer outra. Nesse caso, ouso dizer que o “tempo nos pertence”. Se é que ele realmente nos pertence? 3. Quando do nascimento de minhas filhas – gêmeas bivitelineas – Sofia nasceu às 20:53, ao passo que Alice nasceu às 20:54. Gêmeas, mas separadas por um intervalo de 1 minuto. Nisso, posso dizer que o tempo de Sofia não é o tempo de Alice.
Pois, são exatamente considerações como essas que se coadunam, pelo menos para mim, aos debates travados em sala de aula, no concernente à obra O conceito de tempo, de Heidegger (1997).
Costumo dividir meus trabalhos em intervalos sistemáticos, em partes, ou tempo, tais como introdução, desenvolvimento e conclusão. No entanto, burlando tal disposição, que aliás, tem uma razão de ser, pretendo discorrer sobre o tempo, em Heidegger, em forma ensaística, aplicado a minha particular experiência, qual seja: preservação de meus gametas e o nascimento de minhas filhas.
O que realmente interessa aqui é trazer à baila algumas considerações sobre o conceito de tempo no encontro ocorrido no dia 14 de novembro de 2013, no Seminário de Leitura, dirigido pelo prof. Écio Pisetta, nas dependências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
A primeira delas se refere à nossa imaginação do tempo como algo dado e exterior, que nos circunda.
Pensado a partir da crença, enquanto algo dado, o tempo relaciona-se à eternidade, mas que a ela não pode medir.
"13. Quem afirma tais coisas, ó 'Sabedoria de Deus', Luz das inteligências, ainda não compreendeu como se realiza o que se faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volita ao redor das idéias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão. A esse, quem o poderá prender e fixar, para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo, que nunca pára? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora, estes não podem alongar-se simultaneamente. Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente" (AGOSTINHO, 1980, p. 263).
A partir daí, pode-se pensar na possibilidade de se medir o tempo (AGOSTINHO, ibidem), tendo, no entanto, que se considerar que,
"O tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível. O tempo, para ser estudado na sua que se metafísica, não se deve dividir no “antes” e no “depois”, mas considerar-se na sua síntese de continuidade" (OLIVEIRA SANTOS; AMBROISO DE PINA, 1980, p. 268).
Com o pensamento de Agostinho (ibidem), há um deslocamento do tempo para a subjetividade, eis que passamos a ter a capacidade de medi-lo, numa dimencionalização do espírito em relação às coisas (inclusive o tempo).
"À parte da teologia, a filosofia proporciona as reflexões acerca do ser-aí (dasein) sobre si mesmo e sobre o mundo. Com isso tem-se consciência de algo, cabendo, com relação ao ser-aí, compreender que,
[...] Ser-aí enquanto ser-no-mundo significa: estar de tal modo no mundo que este ser designe lidar com o mundo, permanecer nele num modo de fazer algo, de realizar, de efetuar, mas também de contemplar, de questionar e de determinar por observação e comparação" [...] (HEIDEGGER, 1997, p. 18-19).
Trazendo à tona a experiência do nascimento de minhas filhas, Alice e Sofia, lembro-me do relógio na parede e do médico obstetra dizendo, no exato momento em que Sofia deixava o ventre de sua mãe: “Aí está a Sofia, às 20:53”.
Após, em ato contínuo, disse, em alto tom: “Aí também está a Alice, nascida às 20:54”.
Pensando nas palavras do referido médico e no relógio na parede do centro cirúrgico do hospital em que minhas filhas nasceram, poderia tomar o tempo como uma sucessão de instantes, considerando um minuto após o outro; um minuto entre o nascimento da Sofia e o nascimento da Alice.
Poderia ainda refletir acerca da coleta de meus gametas e de minha mulher, no início do ano de 2012, o momento da fertilização dos mesmos, até o nascimento de nossas filhas. Mais de 1 ano se passou; 19 meses se passaram; 576 dias se passaram. Poderia, pois, tomar cada dia como um “agora”; cada hora desses 576 dias como um “agora”; cada minuto, cada segundo...
Entretanto, com base na obra e Heidegger (ibidem), poderia pensar o acontecimento como dois “agora”: um “agora antes” e um “agora depois”, um “agora mais cedo” e “um agora mais tarde”.
Desse modo, posso entender que, ainda de acordo com as lições de Heidegger (ibidem), o tempo é aquilo que ele é, e não aquilo que um cronômetro diz o que ele (o tempo) é. Da mesma sorte, não se pode compreender o tempo como algo que nós homens criamos, mas, como algo enquanto parte de sua própria estrutura. O tempo a partir daquilo que questionamos como tal.
Interessa ainda registrar o dito comumente reproduzido por parentes e alguns amigos: “Quando você virar pai, nunca mais será o mesmo”.
De fato, sinto-me diferente. Todavia, se por um lado digo “eu sou (pai)”, isso se dá pela minha relação com as outras pessoas, afinal, não posso pensar o eu sem tu, nem o eu sem nós, por outro lado, penso-me (pai) a partir de mim mesmo.
Haveria o eu considerando um ser-aí, enquanto um ser-aí-no mundo neste “agora antes” e “agora depois”, ou numa sucessão de “agoras”?
Essas são algumas reflexões que trago comigo e compartilho com algum leitor, entre tantas outras elucubrações possíveis, agora, a partir da ideia do ser-aí-a-cada-momento (jeweiligkeit).
E meus gametas? Estão aí, no mundo, como Alice e Sofia.

Referência
AGOSTINHO, Santo. Livro XI: o homem e o tempo. In: ______. Confissões. [Trad.] J. de Oliveira Santos; A. Ambrosio de Pina. Confissões; De magistro. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores.
HEIDEGGER, Martin. O conceito de tempo: conferência pronunciada para Sociedade de Teólogos de Marburgo, Julho de 1924. Cadernos de tradução, n. 2, DF/USP, 1997, p. 7-39.

domingo, 18 de agosto de 2013

OSSOS E ESPÍRITO: E OS CROCODILOS?


Após muitos anos, retornei àquela casa que, há décadas, havia sido uma escola em que eu frequentei, em parte de meu ensino fundamental, lá pelos idos de 1980. Trata-se do Colégio Anglo-Americano, em botafogo, que agora é a sede do Instituto Daros na América Latina – a Casa Daros, como é conhecida –, cuja sede internacional fica na cidade de Zürich, Suíça.
Ao chegar àquela casa, logo de cara, deparei-me com um caixão fúnebre feito de lego, bem na entrada, com as cores da bandeira da Colômbia, eis que fazia parte de uma coleção artística de pessoas daquele país.
Naturalmente, aquela peça ali na entrada, subitamente, trouxe-me uma torrente de lembranças boas e outras ruins de meus tempos de escola. De qualquer forma, ao ver aquele mesmo caixão e com meus sentimentos, fiquei pensando em que medida ficamos “enterrados” ao passado, como, no caso, ao nosso passado juvenil. Afinal, alguém consegue esquecer os tempos de escola?
Comumente, trazemos algum souvenir do “cemitério” para nossa casa, como fotos, escudo da escola, carteirinha estudantil etc.
Assim, naquele dia, eu transitava pelo “mausoléu”, curioso com as obras de arte ali expostas e as alterações arquitetônicas da casa. O andar térreo, destinado ao Jardim de Infância e ao Curso de Alfabetização, agora, são um restaurante, uma sala de atividades lúdicas, uma biblioteca etc. No andar superior, antes com as salas das séries do Ensino Fundamental e Médio, no momento, abriga as salas de exposições  artísticas. No pátio, onde antes ficavam uma piscina e um parque, agora está livre; um espaço em que ocorrem atrações musicais, por exemplo. Do outro lado, onde era um teatro, fica um auditório, e por aí vai...
Depois de transitar por várias salas, me vi diante de uma peça retangular feita com vários ossos, ligados entre si. Pensei, pois, se após me deparar com aquele caixão na entrada e sentir-me, de alguma maneira, enterrado naquele espaço, não chegara a hora de exumar-me das minhas lembranças. Mas, a memória acaba por se tornar uma espécie de ponto de fusão entre lembranças. E na mesma sala dos ossos, havia uma gravação numa das paredes: “El crocodilo de Humboldt nos és el crocodilo de Hegel”.
Para aqueles que não sabem, Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander Von Humboldt (1769-1859) foi um geógrafo, naturalista e explorador prussiano, com contribuições à ciência. Seria ele inclusive o responsável pela introdução de expressões como “jurássico”, período terrestre que compreende entre 199 a 145 milhões de anos atrás.
Pois, o crocodilo é considerado um animal cuja origem remonta o período jurássico.
Quanto a Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) este é responsável pela filosofia na qual a mente teria em si um conjunto de contradições e oposições que ora se unem ora se opõe, sem, o entanto, se eliminarem.
Ainda com relação ao tal crocodilo, este se refere a uma arte de José Alejandro Restrepo, pelo que se pode entender a diferença de pensamentos de Humboldt e Hegel. Enquanto o primeiro formulou seu conhecimento no empirismo, mediante suas viagens para além do continente europeu, o segundo formulou sua tese no plano ideal, racional.
Aqueles ossos, aquele caixão, aquela mensagem na parede e aquela escola teriam o significado que tem para mim se lá eu não estivesse décadas atrás? As ideias dependeriam da experiência? As lembranças boas e ruins conseguiriam reduzir ou eliminar umas às outras? De Humboldt a Hegel.
Seja como for, meus ossos e meu espírito ainda “caminham” juntos. Mas, há um pouco de mim que ficou enterrado naquele espaço cultural que, um dia, foi uma escola onde estudei. Outra parte foi exumada e me acompanha ainda hoje. Memória minha lá, e memória da tal escola cá, comigo.
E, afinal, os crocodilos? Bom, acho que ainda estão lá pra quem quiser ver. Mas, não me engoliram...

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

PENSO LOGO EXISTO (OU COGITO ERGO SUM): ceticismo metodológico de um daltônico


Numa noite de julho, sentado a uma das mesas, num canto da sala, na UNIRIO, durante uma aula da disciplina “Introdução à Filosofia”, Baptiste Noel Grasset, o professor, nos propõe falarmos sobre a dúvida, a partir do legado teórico de René Descartes.
Poderia falar de minhas dúvidas sobre a política ou, precisamente, acerca dos políticos, os quais, sinceramente, não sei se ainda tenho dúvidas ou se realmente já os conheço, considerando suas atitudes sínicas. Me defino como republicano e democrata, mas, às vezes, chego até a duvidar tanto da res publica – se realmente é pública –, como da democracia.
Estaria, no entanto, diante de uma experiência sensível.
Poderia discorrer sobre a existência de Deus, como fez o próprio Descartes, e, quiçá, ter uma percepção igual ou diversa dele, de Spinoza, de Nietzsche e de tantos outros. Deus existe? Como? Onde?
Talvez, para conhecê-lo, deveria recitar mantras ou consumir alguma substância como a cannabis, tomar um LSD, ao som de The Doors, com Jim Morrison dizendo “break on through to the other side!”, ou ainda, numa versão light, beber um chá de cogumelo e ouvir um “progressivo”, como Renaissance, na voz angelical de Annie Haslem cantando “ashes are burning”, ou Jethro Tull. Um sonho...
Que mal haveria? Afinal, foi num sonho, no qual estaria em frente uma lareira e com um papel na mão (papel?! ou seda?), que Descartes colocou tudo em dúvida. Ele mesmo, Deus...
Mas, vai que Deus realmente existe e, mediante uma dose a mais, eu não volte?! Prefiro, por ora, desconhecê-lo e manter minha mente e meu corpo juntos!
Poderia escrever sobre minhas dúvidas em relação ao tanto que estudamos e frequentamos as universidades. E para que tanto estudo? Já me graduei em Direito, já fiz mestrado em Educação, atualmente estou, inclusive, em pleno doutoramento nesta área, e, agora, ingressei numa licenciatura em Filosofia. Se vim atrás de respostas, parece que deparei-me com um “gênio maligno”, pois, as dúvidas nunca foram tão persistentes. Aliás, seria o tal gênio maligno o próprio professor Baptiste?
Pois, naquela noite de julho, como se não bastassem as provocações deste professor sobre a existência das coisas, inclusive do homem, e de Deus, segundo Descartes, este mesmo professor (em conluio com a professora Andrea Bieri, para quem vou à aula sempre com meu cachimbo) usa como exemplo a cor azul de uma cadeira próxima a ele.
Ia tudo tão bem...
“Aquela cadeira azul”, disse.
Verdade? Que nada! Eu duvido!
A tal cadeira pode ser azul para ele, mas não para mim, pois, sou dotado de discromatopsia, ou aquilo que popularmente chamam de daltonismo.
Em síntese, o daltonismo pode ser definido como uma disfunção da visão, a qual não tem a capacidade de diferenciar todas ou algumas cores. Isso foi descoberto no século XVIII, por John Dalton, um químico que era portador dessa “perturbação”.
No meu caso, como sou um “cara de sorte”, tenho um tipo mais específico, que atinge somente cerca de 1% (um por cento) da população mundial. Não consigo distinguir vermelho de verde, enquanto cores primárias, e azul de roxo, por exemplo. Mas, também não consigo diferenciar derivações, tais como laranja e ocre, verde musgo e cinza etc.
Um dia, estava em casa, assistindo a uma partida de rugby entre Irlanda e País de Gales. Logo, deparei-me com um problema, já que ambas as equipes trajavam seus uniformes tradicionais. O time da Irlanda jogava com camisas e meiões verdes, ao passo que País de Gales usava camisas e meiões vermelhos.
Não tive alternativa senão perguntar para minha mulher, que àquela altura estava ao meu lado, quem trajava qual cor de uniforme e, portanto, para que lado cada equipe atacava. Fiquei imaginando se eu estivesse em campo, carregando a bola. Para que lado iria? Para quem passaria a bola?
De acordo com a certeza de Descartes sobre Deus, só esse me tiraria dessa enrascada...
A dúvida com relação às cores em minha vida não é fato novo, dada a minha condição. Lembro-me de, quando era criança e gostava de desenhar e pintar, tinha uma caixa de lápis de cor da marca Caran D’Ache, com os lápis numerados e um pantone na tampa da caixa, o que me permitia saber qual cor estava utilizando.
Ganhei aquela caixa de lápis de cor, assim como outras da Faber Castel, mas, todas com números nos lápis e nas caixas.
Por exemplo, na caixa Caran D'Ache, o roxo é numerado de 102, ao passo que o azul escuro recebe o número 159. Enquanto isso, na caixa Faber Castel, o número 53 refere-se ao azul escuro, enquanto o número 55 é destinado ao roxo.
Meu daltonismo foi diagnosticado quando eu devia ter uns oito ou nove anos de idade. Em datas cívicas, por exemplo, eu pintava em roxo o céu das estrelas, na bandeira brasileira, quando haveria de pintar de azul.
Diante de tanta insistência, em trocar o azul pelo roxo, foi recomendado à minha mãe que fizesse um teste, com o intuito de aferir se eu realmente era daltônico. Diagnóstico: positivo. A partir dali, minha vida já teria a marca da dúvida.
Imagina, séculos atrás, eu pintando a bandeira brasileira e inserindo o roxo no lugar do azul. Os positivistas com seu racionalismo fundado na “ordem e progresso” teriam uma sincope, já que o roxo significa, entre outras características, o misticismo.
E na bandeira francesa? Inserindo o roxo, associado à nobreza e ao místico, ao invés do azul, ligado à liberdade. Os jacobinos teriam, provavelmente, cortado a minha cabeça na guilhotina, como um contrarrevolucionário.
E pintar a bandeira norte-americana, trocando o azul pelo roxo? “Um espião inglês! Fuzilem-no!”
Pois, tá aí uma outra coisa engraçada. Nasci numa época em que o mundo estava geopoliticamente dividido entre capitalistas e comunistas. “Nós”, do lado de cá, estávamos sobre a influência dos capitalistas norte-americanos, enquanto “eles”, do lado de lá, estavam sob o jugo comunista soviético. Capitalistas x comunistas, liberais x conservadores, “direita” x “esquerda” etc.
Pois, de lá pra cá, muita coisa mudou. No campo político, ficou realmente difícil saber quem defende qual bandeira. Governos ditos de “esquerda” ou “liberais” cometem os mesmos equívocos, ou até mais graves, do que aqueles de “direita” ou “conservadores”, uma vez que estes últimos tenham sido aparentemente suplantados. Os “vermelhos”, uma vez no lado de cá, praticamente se comportam como os “azuis”. Políticos antes ditos revolucionários defendem, hoje, que a polícia baixe o cacete nos manifestantes ou, quando não, vemos pessoas outrora ligadas a grupos “subversivos” que combateram a ditadura militar com emprego de armamentos, atualmente, no poder, defenderem manifestações pacíficas, mesmo diante de todo infortúnio (corrupção, descaso com os direitos sociais etc.) que assola este país.
Há também aqueles que defendiam o monopólio estatal nos serviços públicos e, tendo se tornado gestores públicos (presidente, governadores e prefeitos), optaram por privatizá-los.
Ao que parece vivemos aquilo que alguns chamam de pós-modernidade, cujas características consistem na ambivalência e na ambiguidade, entre outras. Uma era de confusões de cores e, portanto, de dúvidas.
Assim, sigo duvidando de tudo que para mim não pareça claro e distinto: das cores, se são aquelas que realmente as enxergo; dos políticos, pela própria confusão em seus atos; de nossas e de minhas próprias posições em relação ao mundo etc.
“Só sei que nada sei”, poderia dizer, em eco a Sócrates, numa reafirmação às minhas dúvidas. Aliás, sabendo que ele foi induzido à morte por ingestão de veneno, fico também na dúvida se alguém teria dado ou desejado dar umas porradas nele com aquela história de maiêutica (a partir do questionamento sobre um conhecimento prévio, a proposta insistente de uma nova ideia). “Conhece-te a ti mesmo”, teria dito o pensador grego.
Pois bem. Estava eu em casa, quando o interfone tocou. Era o pesquisador do IBGE, com perguntas para o Censo (pesquisa nacional por amostra domiciliar), a fim de saber quantas televisões, rádios, computadores, geladeiras, micro-ondas e banheiros eu tinha em casa. Pelo que soube, tratava-se de uma pesquisa nacional com o objetivo de diagnosticar o nível socioeconômico do brasileiro, considerando a cor de sua pele.
Não foi por outro motivo pelo qual, num determinado momento, ele me perguntou: “Qual é a sua cor?”
Diante dessa pergunta, disse-lhe, num tom sincero: “Não sei. Por favor, me defina”.
E ele respondeu: “Não posso fazer isso”.
“Mas, por quê?”, insisti.
Foi quando ele explicou-me: “Nós trabalhamos com a cor da pele a partir da autodefinição do entrevistado”.
Bom, quando nasci, fui registrado como de cor “branca”, considerando a cor da pele de meu pai e de minha mãe, num contexto, vale dizer, em que as oportunidades educacionais e profissionais estavam associadas à cor da pele. Quanto mais “branco”, mas chances de sucesso teríamos.
Pensei na minha cor de pele, segundo minha certidão de nascimento, na cor da pele de meus pais, na cor da pele do rapaz do IBGE que me entrevistava, e na relatividade que tal conceito suscita.
“Eu sou quem acho que sou? Essa tal cor é realmente a minha?”, indaguei em silêncio.
Considerando o meu daltonismo e a confusão das cores que ele provoca,  a experiência sensível não tem se dado muito a meu favor. Assim, colocando em dúvida, mais uma vez, a realidade que se apresentava para mim, misturei as cores do pantone do IBGE dentro de mim, como num pote, e respondi-lhe: “Mestiço” (o que o IBGE classifica como “pardo”).
Naquele instante, defini-me pela mente, deixando meu corpo numa posição secundária, como faria Descartes, na busca pelo conhecimento. Separei minhas “substâncias” – mente e corpo. E, pela independência da mente, cogito ergo sum. E, assim, isso se deu graças ao fato de seu ser uma coisa pensante e a meu daltonismo.
Mas, com relação ao resto, sigo duvidando...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

MAIS UMA VEZ, A QUESTÃO DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL...


Há algum tempo, tem-se visto algumas vozes clamando pela redução da maioridade penal, hoje, estabelecida em 18 anos, especialmente quando a mídia massifica a veiculação de notícias sobre adolescentes cometendo delitos.
Naturalmente, o adolescente de hoje é, em alguma medida, diferente daquele de 1940, quando o atual Código Penal brasileiro entrou em vigor, ou daquele do final da década de 1970, quando passou a vigorar a Lei nº 6.697/1979, que instituiu o então Código de Menores. Ao que parece, o advento de novas tecnologias, mormente aquelas referentes à comunicação, como a rede mundial de computadores (internet), e a consolidação da “sociedade de consumo” causaram impactos nos adolescentes, como, aliás, em todas as sociedades.
Pelo que se vê, e como alerta Calligaris (2000), o adolescente de hoje não aceita mais a “moratória” que lhe foi imposta pelos adultos. Ele trabalha (em alguns casos sustenta uma família inteira), tem a capacidade de procriar e possui a habilidade para dirigir veículos, apesar de não ser-lhe permitido fazê-lo. Portanto, hoje, ele reivindica o exercício das faculdades condizentes com suas capacidades metais e físicas, como, por exemplo, eleger seus representantes nos Poderes Executivos e Legislativos, nos três níveis: federal, estadual e municipal.
O exercício desta faculdade (cabe lembrar que, pela legislação atual, pessoas com idade entre 16 e 18 anos não estão obrigadas a votar) vem, aliás, sendo usada com justificativa para aqueles que pretendem ver a maioridade penal reduzida de 18 para 16 anos. “Já que os adolescentes podem votar naqueles que vão fazer as leis, por que não podem responder sob a luz destas mesmas leis?”, argumentam os defensores da redução da maioridade penal.
De fato, a pergunta traz em si uma resposta plausível à questão em pauta.
Seria, pois, uma decorrência lógica enviar adolescentes, com idade entre 16 e 18 anos, que, nos termos da lei, cometem um “ato infracional” (um ato análogo a crime), aos mesmos estabelecimentos para adultos que praticam crimes. “Quem age como adulto, tem a plena capacidade mental de responder penalmente como se um adulto fosse”, assim poder-se-ia argumentar.
Entretanto, cabe perguntar se a redução da maioridade penal e, consequentemente, o envio de adolescentes aos presídios onde os adultos considerados criminosos cumprem suas penas não representaria um retrocesso àquilo que a Modernidade trouxe como uma conquista: a percepção de que crianças e adolescentes são seres humanos em desenvolvimento.
Vale lembrar que a invenção conceitual de infância e adolescência serviu para garantir direitos a pessoas que eram, mesmo em pleno desenvolvimento intelectual e físico, tratadas como se fossem dotadas de todas as capacidades para o exercício das escolhas e atividades típicas de pessoas adultas. No século XIX, na Europa, por exemplo, crianças e adolescentes trabalhavam em fábricas por longas horas. Ademais, o reconhecimento de crianças e adolescentes como seres em desenvolvimento fez com que a educação fosse considerada um dos elementos mais importantes daquilo que se entende como cidadania.
Considerando uma “sociedade em rede”, em que ídolos midiáticos (atores, músicos, comediantes, jogadores de futebol, participantes de reality shows etc.) tornam-se os “deuses” de uma massa de pessoas que não podem ser quantificadas, ditando regras e costumes, em que medida imputar aos adolescentes o status de criminosos e, assim, enviando-lhes aos presídios, não representaria um ônus excessivo pelas escolhas que fazem, fundadas em moldes comportamentais daqueles mesmos “deuses”? Ligam-se as TVs e lá estão eles, os ídolos – de narcotraficantes moradores de favelas e periferias aos “engravatados” de Brasília, que, “criminosos de colarinho branco”, valem-se de um vasto corpo de advogados e até dão entrevistas, em poses soberbas.
Numa “sociedade de consumo”, em que o modelo de pessoa “boa” e/ou “bem sucedida” é aquela que “tem” (basta ver a cobertura midiática sobre aquelas pessoas que faturam milhões de reais ou dólares), ao invés daquela que procura “ser”, a redução da maioridade penal para adolescentes não implicaria um ônus em excesso em face daqueles que, vislumbrando as “maravilhas” dessa mesma sociedade, desejam participar do mercado? Mesmo porque, numa sociedade de consumo, são os consumidores quem ditam as regras...
Vale ainda pensar de que forma a redução da maioridade penal dos adolescentes não significaria, condenando-os pelas “desgraças sociais”, uma espécie de catarse das gerações anteriores pela sua incapacidade em legar às crianças e aos adolescentes um futuro promissor. Afinal, as ideias de “progresso”, “desenvolvimento”, “estudar significa conseguir um bom emprego”, entre tantas outras, não foram cunhadas pelas presentes gerações?
Merece a reflexão se as presentes gerações apenas tentam sobreviver do rescaldo da nossa incapacidade em cumprir tais promessas.
Assim como a primeira questão – “Já que os adolescentes podem votar naqueles que vão fazer as leis, por que não podem responder sob a luz destas mesmas leis?” – estas três últimas perguntas também podem trazer em si suas respectivas respostas, inclusive para um mal-estar da intelligentsia (leiam-se políticos, jornalistas e acadêmicos), ávida por uma resposta imediata às mazelas da sociedade, como, por exemplo, a cena de um adolescente que, num sinal de trânsito, empunha uma arma para um adulto em seu veículo, a fim de subtrair-lhe seu aparelho de telefonia móvel (celular, smartphone etc.), aquele que esse mesmo jovem viu num comercial na TV.
E pode nem ser para seu uso próprio, mas, provavelmente, para adquirir uma droga e aplacar sua angústia de se viver numa “sociedade de consumo”, uma sociedade em que “nós (a velha geração) hipotecamos o futuro”, no dizer de Bauman (2012).
Quem já visitou uma instituição destinada à aplicação de medidas socioeducativas sabe que elas não são um "paraíso" na Terra. Da mesma maneira, ao contrário do que se tem interpretado, a Lei nº 8.069/1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não é benevolente para com os adolescentes que cometem atos infracionais, ainda que esta mesma lei necessite de reparos, tendo em vista o atual contexto e as peculiaridades dos atos dos adolescentes.
Toda cautela é pouca e, portanto, toda sobriedade é necessária, mesmo porque, quando se vê um adolescente morador de favela ou periferia cometendo um delito, logo pode vir à mente a ideia de que reduzir a maioridade penal, para 16 ou até 14 anos de idade, é a solução para as mazelas sociais, mas, quando se tem a notícia de que um alto contingente de adolescentes de classe média encontra-se internado em instituições como a Fundação Casa, em São Paulo (28%, segundo o censo de 2006), o clamor para a criminalização de adolescentes infratores (ou, “em conflito com a lei”, para utilizar um jargão jurídico), e o envio destes para os presídios, torna-se um mal-estar, posto que, como diz o velho ditado: “pimenta nos olhos dos outros é refresco”.
BAUMAN, Zygmunt. Entrevista concedida ao canal Globo News, programa Milênio, em 19/01/2012. Disponível em http://youtu.be/OcPD1pLdkoQ.
CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
PEREIRA, Elvis. Tráfico e desejo de consumo levam classe média para a Fundação casa: cresce número de internações e apreensões; ‘se continuar nessa toada vamos ter problemas’, admite presidente. O Estadão de São Paulo. Disponível em www.estadao.com.br/noticias/impresso,trafico-e-desejo-de-consumo-levam-classe-media-para-a-fundacao-casa,449333,0.htm, em 12/10/2009. Acesso em 25/04/2013.