quarta-feira, 7 de outubro de 2009

DÉCADA DE 1980: QUANDO TODOS PODIAM SER CAMALEÕES

Vira e mexe, ouve-se alguém dizer que a década de 1980 foi uma “década perdida”.
Muito provavelmente, quem se refere à década de 1980 como “perdida” assim o faz porque possui um fascínio extremado às décadas que a antecederam, especialmente as de 1960 e 1970, ou desconhece a história.
Não há como negar a agitação cultural (da chamada contra-cultura) da década de 1960, no mundo e no Brasil. Movimentos sociais contra a guerra no Vietnã, em defesa do meio ambiente, em busca de igualdades raciais e sexuais, pela liberdade política, etc. deixaram suas marcas. Vivia-se na expectativa das transformações da Era de Aquários.
A Europa estava incendiada pela Primavera de Praga e pelo Maio Francês, ambos em 1968.
Nessa atmosfera, a geração beatnik (1) clamava por mais espaço em sociedades tidas como conservadoras. A juventude queria, a partir de então, assumir o poder (lembre-se do lema francês "nous sommes le pouvoir") ao mesmo tempo em que curtia os prazeres da vida. Se por um lado, havia o desejo de transformar o mundo, por outro, queria-se viver o presente – fazer sexo livre, consumir drogas e entregar-se ao ócio. Tudo isso, ao som dos The Beatles (2), The Rolling Stones, The Who, The Doors, Jimi Hendrix, Jeanis Joplin, entre outras personalidade e bandas.
“Faça amor, não faça Guerra” e “Paz e Amor” eram alguns dos lemas entoados ao final da década de 1960. O Festival de Woodstock (3) sintetizou, no apagar das luzes da década de 1960, o sonho de uma geração por um “mundo alternativo”, o que foi seguido pela juventude brasileira.
No caso do Brasil, além das influências das manifestações culturais externas, a juventude (principalmente da classe média urbana) encontrava-se envolvida pela questão política concernente à supressão progressiva das liberdades pelo regime militar, instituído pelo golpe na madrugada de 31 de março para 1° de abril de 1964. Uns jovens dedicavam-se à luta armada, na esperança de fazer frente aos militares e à influência norte-americana, como Fernando Gabeira e Franklin Martins. Enquanto isso, outros jovens utilizavam a música como sinal de protesto, com destaques para Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Os Mutantes, Geraldo Vandré, etc.
Movimentos culturais como a Tropicália representaram vozes da contra-cultura brasileira. Contestar o establishment era palavra de ordem.
Com “alegria, alegria”, e “aquele abraço”, “caminhando e cantando”, ainda que “meio desligado”, pretendia-se chamar a atenção para aquele “cálice”. Havia o sonho de um “mundo melhor”.
Passados os desencantos da década de 1960, chegou-se à década de 1970 sob o rock pesado de bandas como Deep Purple e Led Zeppelin, e, mais tarde, ao ritmo da disco music de KC & The Sunshine Band, The Begees e Donna Summer.
No Brasil, o confronto de grupos de esquerda armados, de um lado, e militares e paramilitares, de outro, continuavam a dar o tom da política, com os primeiros levando desvantagem. Médici, Geisel e seus respectivos generais faziam de tudo para que o ideal de Segurança Nacional e Progresso não fossem abalados. A “benevolência” dos militares de plantão com relação aos opositores políticos chegou ao ápice por conta de lemas como “Brasil, ame-o ou deixei-o”.
Enquanto isso, a partir da segunda metade da década de 1970, o Studio 54, em Nova Iorque, começava marcar época, servindo de modelo para boates no mundo, como algumas do Rio de Janeiro e em São Paulo (4).
A era do sexo, drogas e rock ‘n roll deu lugar a era do sexo, drogas e disco music. Camisas com “gola gaivota”, calças com bainhas boca-de-sino, sapatos com saltos altos e meias soquetes vestiam corpos ávidos por muita dança e por se fazer aparecer. Mas, junto com esta “nova era”, o fantasma da AIDS começava a deixar seus sinais.
No caso particular brasileiro, a década de 1970 foi, sobretudo ao seu final, marcada pelo movimento de abertura política que culminou com o processo de Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita (5), e a volta dos exilados no início da década de 1980.
Não há como esquecer a chegada de nossos exilados em aeroportos como o Galeão (atual Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim), na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, em meio a palmas, cantorias, abraços e lágrimas. A canção O Bêbado e A Equlibrista, composta por Aldir Blanc e João Bosco, e cantada na voz de Elis Regina virou até uma espécie de hino deste momento.
A sociedade brasileira que parecia cansada de tanta desilusão, opressão e violência, recobrou seu fôlego com o retorno dos exilados, com a derrocada da ditadura militar e com a efervescência política e cultural que se seguiu. Afinal, foram vinte anos sob o porrete de governos autoritários. O grito de liberdade estava entalado na garganta. Havia chegado a hora de dar o grito.
No entanto, ainda havia o que ser feito. Havia a necessidade de se reconstruir uma democracia que foi abortada prematuramente na madrugada de 1° de abril de 1964. E, por certo, a cultura não haveria de ficar de fora deste processo.
Assim como na década de 1960, a juventude de 1980 também buscava a afirmação de sua identidade e um papel na transformação em uma sociedade como a brasileira.
No campo da música, por exemplo, juntamente com os astros internacionais, entraram em cena diversas bandas brasileiras, cujos estilos variavam – Legião Urbana, Os Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Blitz, Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens, Titãs, Biquini Cavadão, etc.
Um referencial no movimento cultural da década de 1980 diz respeito à realização do festival Rock in Rio, em 1985. De 11 a 20 de janeiro daquele ano, várias bandas e astros nacionais e internacionais dividiram o palco montado na chamada Cidade do Rock, na divisa dos bairros da Barra da Tijuca e Jacarepaguá.
Deu de tudo, de roqueiros como Queen, Iron Madden, Nina Hagen, Whitesnake, AC/DC, Scorpions, Ozzy Osborne e Barão Vermelho, passando pelos pops do Paralamas do Sucesso e do Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens, pelos regionais Alceu Valença e Elba Ramalho, chegando até em bandas do estilo new wave, como B-52’s e Go-Go’s (6). Uma verdadeira Torre de Babel musical.
Para quem se dispusesse a transitar entre as tribos na década de 1980, havia um vasto mundo. Punks, Darks, New Waves, Metaleiros, etc.
O início do movimento punk data da segunda metade da década de 1970. Questões sociais, econômicas e políticas contribuíram para o aparecimento na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos, de jovens descontentes com o sistema vigente.
Desde então, as ruas de cidades como Londres, Liverpool, Manchester, Berlim, entre outras, começaram a ser tomadas por jovens com cabelos com corte ao estilo “moicano” ou espetados, usando calças jeans rasgadas, acasalhos jeans ou de couro com emblemas costurados, botas do exército, correntes, pulseiras de couro ou metal, etc. E bandas como Sex Pistols e Ramones representavam, no plano internacional, essa tribo, na música.
O Brasil recepcionou essa nova ideologia e os punks nacionais puderam dançar e se manifestar ao som de grupos musicais como Plebe Rude, Inocentes, As Mercenárias, Garotos Podres, entre outras.
Lembro-me de uma vez em que assisti a um show no Circo Voador (mas não me recordo a data exata) com a participação das bandas Heróis do Dia, Plebe Rude e Inocentes. Aliás, o evento marcou a última apresentação da banda brasiliense Heróis do Dia.
O movimento punk serviu inclusive de inspiração para artistas como Angeli, que criou um personagem chamado Bob Cuspe.
Além dos punks, havia a tribo dos darks. Vestidos predominantemente com roupas na cor preta, com rostos pálidos e carregados de maquiagem (batom e lápis preto nos olhos) a tribo dos darks emergiu no Brasil sob a influência de bandas estrangeiras como Siouxsie & The Banshees, Bauhaus, The Cure, Sisters of Mercy e outras. Bandas como The Smiths, Everything But Girl, Eccho & The Bunnymen, Lloyd Cole & The Commotion e New Order também embalavam a noite dos darks, em boates próprias, como o Crepúsculo de Cubatão (7), localizado na Rua Barata Ribeiro, no bairro carioca de Copacabana, que um de seus sócios foi inglês Ronald Biggs, famoso por ter cometido o assalto ao trem postal britânico, em 1963 (8).
Entre bebidas exóticas como Kamikaze e Praia de Ramos, pessoas “diferentes” do convencional dançavam no subsolo da boate Crepúsculo de Cubatão. Cada um procurava o seu pedaço na parede (as pessoas dançavam com seus rostos virado para as paredes; "cada um na sua"), a fim de dançar, naquilo que atualmente poderia se compreender como “cada um no seu quadrado” (o piso da pista de dança tinha a aparência de um tabuleiro de xadrez).
Os adeptos do estilo new wave também deixaram sua marca na década de 1980. Costumavam a usar roupas coloridas e sem qualquer combinação. Vestir uma camisa laranja, uma calça verde e usar tênis lilás ou quadriculados, por exemplo, eram aceitáveis para quem curtia sol e música alegre. Na música, o grupo B-52’s dava o tom new wave.
Punks, darks, new waves... Como deixar de lado os metaleiros. Ao som de bandas como Iron Madden, os amantes do metal rock balançavam a cabeça, vestiam calças jeans surradas, jaquetas jeans, usavam tênis ou botas de couro estilo cowboy e deixavam os cabelos longos.
A par de bandas e tribos estilizadas, no Brasil havia grupos que curtiam bandas de música como Legião Urbana.
Aliás, é justamente a esta banda que se pode atribuir um dos hinos de uma geração, com a música Será.
Logo de cara, o refrão “tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você, não é me dominando assim que você vai me entender, posso estar sozinho, mas sei aonde vou...” sintetiza o grito de uma geração. Uma geração cansada de “nãos”, ávida por ser dona de seu próprio destino.
Importante aqui ressaltar aqui alguns fatos sobre esta década.
O primeiro deles se refere ao processo de abertura política pela qual o Brasil atravessava. Como dito, houve o retorno de políticos, artistas e intelectuais ao país, anos após o exílio, um movimento crescente pelas eleições diretas, cuja campanha ficou conhecida como Diretas Já!, e a organização de uma constituinte, que culminou na “Constituição Cidadã”, expressão cunhada por Ulisses Guimarães para a Constituição da República Federativa do Brasil até hoje vigente.
No âmbito das artes e da imprensa, Henfil e o pessoal do jornal O Pasquim davam um tom irônico à situação do país, satirizando a ditadura e chamando a atenção para as mazelas por ela deixadas, como a violação aos direitos humanos, as desigualdades sociais, corrupção, etc., enquanto Marta Suplicy, Marília Gabriela, Ala Szerman, Irene Ravache e Clodovil Hernandez, colocavam o sexo feminino em destaque no programa TV Mulher, cuja música de abertura era É Cor de Rosa Choque, de Rita Lee. Neste programa, a sexóloga Marta Suplicy escandalizava a sociedade conservadora ao falar sobre orgasmo feminino e citar a palavra "vagina".
O humor também fazia parte da grade de programação da televisão. Programas como Viva o Gordo (1981-1987) e Chico Anísio Show (1982-1990) faziam graça de tudo, inclusive da política. Pode-se também assistir aos dois últimos anos do programa Planeta dos Homens (1976-1982).
A juventude brasileira estava em voga no cinema, com filmes como Menino do Rio (1981), Bete Balanço (1984), Rock Estrela (1986), entre outros. Enquanto isso, na televisão, programas como Armação Ilimitada (1985) colocavam a imagem da juventude dentro dos lares e divulgando a geração saúde, em alusão às práticas esportivas, ao sol, à alimentação sadia e ao padrão estético-corporal.
Muitas coisas aconteceram na década de 1980, seja em que área for: artes, música, cinema, política, moda, etc.
Quem se dispôs a circular pelas tribos na década de 1980, sem preconceitos, talvez tenha tido a chance de ter vivido aquela década como um camaleão. Qualquer um pode ser um camaleão, e não somente o David Bowie (9).
Então, senhoras e senhores, com o perdão da palavra, década perdida, é o cacete!
Notas:
(1) A expressão Beatnik foi criada, com a adição dos termos da geração Beat e do satélite artificial soviético Sputnik, para designar a geração que se achava fora do centro das tomadas de decisão nas sociedade até a década de 1960. Esta juventude Beatnik seria responsável pelos movimentos de contra-cultura.
(2) A banda The Beatles foi marcada por duas fases, até o seu término em 1970. Da data de sua fundação, 1957, a 1966, a banda ficou famosa por suas músicas influenciadas pelo rock 'n roll. A partir de 1966, The Beatles se dedicaram a canções com conotações espirituais e psicodélicas.
(3) O festival musical Woodstock foi realizado de 15 a madrugada de 18 de agosto de 1969 no sítio localizado na pacata cidade de Bethel, no estado norte-americano de Nova Iorque.
(4) No Rio de Janeiro, destacaram-se as boates Hipopotamus e Papagaio Disco Club (filial da boate de São Paulo). Em São Paulo, o Papagaio Disco Club e o Banana Power eram as casas mais freqüentadas na época.
(5) Os termos da chamada Anistia Ampla, Geral e Irrestrita vêm sendo discutidos, pois a quem alegue que grupos militares e paramilitares violadores dos direitos humanos, que por décadas torturaram, seqüestraram e mataram, dela se beneficiaram. Assim, a Anistia teriam beneficiado não somente os persguidos políticos, mas seus algozes.
(6) A primeira edição do Rock in Rio, no Rio de Janeiro, em 1985, contou com: dia 11 de janeiro de 1985, Queen, Iron Maiden, Whitesnake, Baby Consuelo e Pepeu Gomes, Erasmo Carlos e Ney Matogrosso; no dia 12 de janeiro de 1985, George Benson, James Taylor, Al Jarreau, Gilberto Gil, Elba Ramalho e Ivan Lins; no dia 13 de janeiro de 1985, Rod Stewart, The Go-Go's, Nina Hagen, Blitz, Lulu Santos e Os Paralamas do Sucesso; no dia 14 de janeiro de 1985, James Taylor, George Benson, Alceu Valença e Moraes Moreira; no dia 15 de janeiro de 1985, AC/DC, Scorpions, Barão Vermelho, Eduardo Dusek e Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens; no dia 16 de janeiro de 1985, Rod Stewart, Ozzy Osbourne, Rita Lee, Moraes Moreira e Os Paralamas do Sucesso; no dia 17 de janeiro de 1985, Yes, Al Jarreau, Elba Ramalho e Alceu Valença; no dia 18 de janeiro de 1985, Queen, The Go-Go's, The B-52's, Lulu Santos, Eduardo Dusek e Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, no dia 19 de janeiro de 1985, AC/DC, Scorpions, Ozzy Osbourne, Whitesnake, Iron Maiden, Baby Consuelo e Pepeu Gomes; no dia 20 de janeiro de 1985, Yes, The B-52's, Nina Hagen, Blitz, Gilberto Gil, Barão Vermelho e Erasmo Carlos.
(7) A boate Crepúsculo de Cubatão (1984-1989) localizava-se na Rua Barata Ribeiro n° 543, Copacabana, no Rio de Janeiro. A boate recebeu este nome como ironia à cidade de Cubatão, considerada na década de 1980 como uma das cidades mais poluídas do mundo, numa região conhecida como Vale da Morte. A boate era freqüentada por adeptos do movimento dark (mas as pessoas apenas queriam ser diferentes), cujas roupas eram marcadas predominantemente pela cor preta, ou diferentes, como algumas pessoas preferem lembrar. Em 1989, a boate passou a se chamar Kitschnet.
(8) Ronald Arthur Biggs tornou-se famoso após assaltar um trem postal na cidade de Buckinghamshire, em 1963, na companhia de 15 pessoas. Responsável pelo roubo de 2,6 milhões de libras, no ano seguinte, foi detido juntamente com os comparsas. Mas fugiu da penitenciária, em 195, e chegou a Paris, tendo adquirido uma falsa identidade. Nos anos de 1970, chegou ao Brasil, onde estabeleceu domicílio. Decidiu retornar a Inglaterra em 2001 e, ao desembarcar em solo britânico, foi imediatamente preso. Foi solto em 2009, pos ordem do ministro da justiça Jack Straw, devido ao seu debilitado estado de saúde.
(9) David Bowie tinha o apelido de camaleão porque mudava de estilo musical e estético com frequência. Do visual psicodélico da década de 1970, inclusive quando cantava na banda Ziggy Stardust, David Bowie se tornou um cantor de música pop e que vestia trajes elegantes como terno e gravata.

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