quinta-feira, 23 de outubro de 2008

UN HERMANO EN NUESTRA CASA



A história abaixo possui fatos reais e outros fictícios. Entretanto, esta mesma história tem como objetivo narrar fatos reais e dramáticos, a partir de algumas experiências pessoas do autor.
Tendo como pano de fundo a Copa do Mundo de Futebol na Argentina, no ano de 1978, esta história mostra como há coisas que o tempo não apaga. Amor, cumplicidade e tolerância são algumas delas.


Foi no final de maio de 1978 que um primo meu chegou da Argentina em nossa casa. Segundo minha mãe, veio passar um tempo com a gente.
Confesso que não sabia que a gente tinha parentes naquele país. Mas, aos poucos, mais histórias de minha família seriam contadas por minha mãe.
Descobri que a minha família, por parte de pai, era uma verdadeira salada de frutas. Tinha poloneses, norte-americanos e até argentinos. E a tal salada de frutas ficava ainda mais rica com a colaboração do lado de minha mãe, cuja família tinha franceses, portugueses e, é claro, o bom sangue brasileiro.
Vivíamos o período da chamada ditadura militar. Mas, como eu era um simples garoto, não sabia direito os efeitos do citado regime político.
Estávamos à beira de uma Copa do Mundo de futebol. E a Argentina seria a sede da competição de 1978.
Então, o que é que aquele meu primo argentino estava fazendo lá em casa? Ele não deveria estar assistindo a Copa do Mundo ao vivo, como tantos outros Argentinos? Por que deixar o país justamente no momento em que todos queriam estar lá?
Meu irmão, que era mais velho do que eu quase uma década e altamente politizado, me explicou que as coisas não estavam bem na Argentina. Por aqui no Brasil, a ditadura já dava seus sinais de fadiga, mas, por lá, o “pau ainda tava cantando”.
Ouvi atentamente as palavras de meu irmão, mas não me importei tanto com a situação, mesmo porque eu era apenas um garoto, mais interessado em assistir a Copa do Mundo, jogar futebol de botão ou futebol de tampinhas. É que uma empresa de refrigerantes havia lançado uma coleção de tampinhas com as caras e os nomes dos jogadores das seleções participante da Copa do Mundo de 1978. A gente amassava um pedacinho de papel, fazendo uma bolinha, e a “chutava” com os dedos, com um jogador passando para o outro. Os gols eram feitos com caixas de fósforo. Era uma febre entre a garotada!
Cheguei a jogar futebol de tampinhas com aquele meu primo. Não posso esquecer o Mário Kempes. Afinal, a Argentina do meu primo venceu o meu Brasil, de Leão, Oscar, Nelinho, Cerezo, Rivelino Zico, Dirceu e Reinaldo.
Mas, o que eu não sabia é que a Copa seria a competição do tal Mário Kempes.
Da primeira fase da Copa do Mundo, me lembro muito pouco. A não ser daquele juiz maluco que terminou a partida do Brasil contra a Suécia, antes do Zico botar a bola pra dentro do gol sueco. O escanteio foi cobrado para o Brasil e, justamente quando comemorávamos, o tal juiz anulou o gol, dizendo que partida havia sido encerrada antes da cabeçada de Zico.
Tem gente que diz que roubalheira contra o Brasil naquela Copa do Mundo havia começado naquele lance.
Meu primo era um cara legal. E à medida que íamos convivendo, tive a oportunidade de ir aprendendo a falar espanhol, ou castellano, que se diz na Argentina.
Ele jogava futebol de botão e de tampinha comigo, conversávamos, íamos à praia juntos, mas ele se dava melhor ainda com meu irmão. Eles eram quase da mesma idade. Eles iam juntos às festinhas, às discotecas (na época, era assim que se chamavam), aos bares, etc.
A estadia de meu primo lá em casa também me serviu para que eu conhecesse cada vez mais a diversidade cultural. Meu primo e meu irmão ouviam desde rock até disco, passando pela MPB. Uma hora tocava uma música do Led Zeppelin, em outra, do Caetano Veloso, até chegar em “shake your booty”, do KC & The Sunshine Band.
E as festas lá em casa? Lembro de uma vez que meu irmão colocou umas sessenta pessoas num espaço que mal cabiam vinte! Foi uma loucura.
Tomei um porre daqueles, após fazer uma espécie de alquimia com as bebidas que encontrava pela frente. Acabei ficando “alegrinho” e pra dormir...
A Copa do Mundo de 1978 começou e as atenções de voltaram para o desempenho da seleção brasileira na competição. Mas lá em casa, além do Brasil, a equipe argentina também era motivo de torcida.
Minha mãe, com aquele jeito “mãezona” de ser, logo abraçou a causa do meu primo. Dizia ela que, tínhamos família na Argentina e, por isso, quando o Brasil não estivesse jogando, deveríamos torcer pelos hermanos.
Aquilo soou muito estranho para mim. Imagine: os argentinos sempre foram nossos “inimigos”, principalmente dentro das quatro linhas. Só de pensar em comemorar um gol argentino, me causava uma sensação estranha. E sair de casa com uma camisa da equipe alvi-celeste, nem pensar! Eu tinha medo até de apanhar na rua.
Brasil e Argentina se classificaram em seus respectivos grupos, chegando à segunda fase da Copa do Mundo. O negócio é que ambas as seleções caíram no mesmo grupo na segunda fase.
Naquele tempo, não havia partidas semifinais, como conhecemos hoje. As seleções mais bem colocadas na primeira fase da Copa se dividiam em dois grupos, com quatro equipes cada. Os primeiros colocados de cada grupo faziam a Final, enquanto os segundos melhores colocados disputavam o terceiro lugar.
Numa noite de junho, Brasil e Argentina se enfrentaram. Lá em casa, a torcida estava dividida, com uma perceptível desvantagem para meu primo. Éramos três contra um. Mas o clima de fair play ficou claro, ainda mais pelo fato do jogo haver terminado zero a zero. A classificação do Brasil ou da Argentina para a partida final da Copa do Mundo somente se saberia nas partidas seguintes. Na última rodada, o Brasil enfrentaria a Polônia, enquanto que a Argentina teria o Peru pela frente.
O Brasil venceu a Polônia por 3 x1, numa partida realizada a tarde. Dávamos como certa a classificação da seleção nacional para a Final, contra o primeiro lugar do outro grupo, que tinha Alemanha Ocidental, Áustria, Holanda e Itália.
Pra se ter uma idéia da legitimidade de nossa confiança, a Argentina precisaria vencer a seleção peruana por um placar de, no mínimo, cinco gols de diferença, se quisesse disputar a Final. Ora, nas nossas cabeças isso era impossível!
Pois bem, a partida entre Argentina e Peru chegou ao fim, com os hermanos vencendo pelo placar de 6 x 0. Era realmente inacreditável. A seleção peruana era não era ruim; prova iddso era que havia feito uma boa primeira fase da Copa, se classificando em primeiro lugar em seu grupo. Tudo bem que havia perdido as duas partidas anteriores válidas pela segunda fase, para a Polônia e o Brasil. Mas, daí perder de seis a zero para a Argentina... Aí, são outros quinhentos.
Muita gente disse (e continua dizendo até hoje) que a seleção peruana foi subornada. Mas meu primo, apesar da alegria pela classificação de seu país para a partida final da Copa do Mundo, tinha outra versão para a história.
De acordo com meu primo, havia duas coisas que não poderíamos deixar de lado:
Uma delas se referia ao fato de que nenhum jogador peruano poderia regressar ao seu país com a “cara limpa”. Imagine perder uma partida de Copa do Mundo por uma goleada histórica como aquela. Ademais, meu primo tinha ciência que os argentinos não gozavam, já naquela época, de um prestígio junto aos outros povos. Ele havia viajado por países como Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai. E se lembrava perfeitamente como havia sido “bem tratado” nestes países.
Portanto, ainda acordo com ele, não haveria suborno que colocaria a honra dos peruanos em segundo plano.
Outro fato que ele fazia questão de dizer era que a ditadura militar era “carniceira”. Eles fariam qualquer coisa para que a Argentina vencesse aquela Copa do Mundo. A imagem do regime militar naquele país, a exemplo do que ocorreu com o Brasil em 1970, dependia do sucesso da equipe nacional na competição mundial de futebol.
Durante a Copa do Mundo, houve uma espécie de trégua entre os militares que ocupavam o Poder na Argentina e os grupos de resistência. O evento esportivo foi tão bom para o governo (e por que não dizer também para as organizações para-militares) que, graças àquele, muitos resistentes foram presos e “desaparecidos”, em pleno período de trégua.
O Brasil venceu a Itália, na partida válida pelo terceiro lugar da Copa, com um golaço do lateral Nelinho, em que a bola fez uma curva incrível, batendo o goleiro da azzurra Dino Zoff. Comemoramos como se fosse a vitória que garantia o título mundial de futebol daquele ano, enquanto os jogadores da seleção canarinho davam uma volta olímpica pelo gramado, considerando-se “campeões morais”.
Dias depois, chegava a hora da grande Final entre a Argentina, dona da casa, e a Holanda, seleção que havia encantado o mundo com o “carrossel” ou a “laranja mecânica” de quatro anos antes, na Copa do Mundo na Alemanha.
A seleção holandesa não tinha Cruyff, seu grande craque. O gênio da camisa 14 da equipe laranja se recusou a participar da Copa do Mundo em boicote ao regime militar que ocupava o Poder na Argentina. E ele foi acompanhado por outros atletas, como o alemão Paul Breitner.
Percebi que meu primo concentrava um misto de alegria e tristeza. Sentia alegria por que era a chance de ver a seleção de seu país campeã do Mundo pela primeira vez. Mas, ao mesmo tempo, estava triste, pois sentia saudades da família e dos amigos que por lá ficaram.
A partida começou, e meu primo estava a ponto de comer os dedos. Argentina e Holanda fizeram uma partida muito disputada.
Quando Kempes abriu o marcador ainda no segundo tempo, o estádio Monumental de Nuñes, em Buenos Aires, quase veio abaixo. E meu primo enlouqueceu. Pulava e cantava feito doido.
Eu olhava aquela cena com espanto. Meu primo pulando feito maluco, a pipoca caindo pelo chão e o refrigerante em sua mão idem.
O estranho é que eu também fiquei meio louco ou, pelo menos, ansioso. Nem lembro quantas balas soft (aquelas coloridas, sabor de fruitas, duras pacas) quebrei nos dentes.
E quando a Holanda empatou o jogo, no segundo tempo, o referido estádio ficou em silêncio, assim como meu primo, ali no meio da sala, com a cabeça no chão, bem em frente à televisão (assistimos a maioria dos jogos da Copa do Mundo em uma televisão em preto e branco, mas as finais numa televisão colorida que ganhamos de presente de meu avô, um militar aposentado).
Notei que a vizinhança e as pessoas na rua torciam pela equipe de camisa laranja. Mas nós, lá em casa, torcíamos pela Argentina. Até eu, que antes tinha resistência, acabei me rendendo aos “inimigos”.
Quase no final do segundo tempo, um jogador holandês, que não lembro o nome, chutou a bola na trave de Fillol, o goleiro argentino. Meu primo gelou.
No intervalo entre o tempo regulamentar e a prorrogação tratamos de ir ao banheiro, caminhar pela casa, com vistas a diminuir a ansiedade, e fazer outras coisas.
O tempo extra começou e o estado de ansiedade voltou.
Mas ele, o artilheiro Mário Kempes, estava lá para marcar o segundo gol da Argentina. Será que seria o gol do título? A dúvida foi dissipada quando Bertoni marcou para a Argentina no final da prorrogação.
O juiz apitou o fim da partida e a gente podia ver a torcida no Estádio Monumental de Nuñes louca, comemorando o título inédito.
Mas há uma cena que não sai da minha cabeça até os dias de hoje. Vi o goleiro Fillol abraçado ao zagueiro Tarantini, ambos ajoelhados e chorando. E a mesma cena se repetia ali, bem em frente à televisão, na minha cara, com meu irmão e meu primo, chorando, feito duas crianças, ajoelhados e abraçados, como o goleiro e o zagueiro argentinos.
Confesso que não fiquei imune àquela cena. De meus olhos também corriam lágrimas.
Quando o capitão argentino Daniel Passarella recebeu a taça do presidente Jorge Videla, meu primo me ensinou o primeiro palavrão em castellano, mesmo sem querer, ao pronunciar a seguinte sentença: “Hijo de uma putana!”.
Naquele instante, além de aprender um palavrão em castellano, pude perceber como as coisas estavam. Mas, somente mais tarde, muito mais velho, tive a real dimensão dos fatos. Copa do Mundo, Mães da Praça de Maio (Madres de La Plaza de Mayo), Ditadura Militar, Operação Condor, tortura, “subversão” e Direitos Humanos são expressões que conheceria a fundo ano depois.
A Copa do Mundo de 1978, na Argentina, terminou, com a rotina voltando ao seu normal.
Meu primo foi embora, após algumas semanas conosco. Mais tarde fiquei sabendo que ele não regressou logo para a Argentina. Foi para a Espanha encontrar uns amigos. Descobri que aquela estadia em nossa casa fora para despistar “alguns caras” que estavam atrás dele. Ele era um jovem estudante e, como um considerável número de pessoas de sua idade, engajado em movimentos contra a Ditadura.
Só anos mais tarde, meu primo retornou para seu país, quando a situação já estava mais tranqüila, devido à queda do governo militar, após a Guerra das Malvinas, um dos fatos mais dramáticos da história argentina.
Meu primo reside com a família em Buenos Aires e atua como advogado de sindicatos, agora sem o risco de ser tachado de “subversivo”, ser preso ou desaparacer, mas ainda nos falamos por telefone.
Ele até me convidou para assistirmos ao River Plate, quando eu for por lá vê-lo. Disse-lhe que na Argentina torço pelo Boca Juniors. E ele me falou que tudo bem.
Em breve, tomaremos cerveja junto e conversaremos. Os tempos são outros, mas as histórias são eternas entre los hermanos.
Em plena era de Ditaduras, com gente sendo presa, torturada e sumindo, conseguimos viver uma democracia plena. Felizes, apesar das diferenças.

Um comentário:

Shamai disse...

Muito bom Robert!
Durante a última Copa, um canal da TV à cabo apresentou jogos principais de todas as Copas, e a Copa de 78 sem dúvida foi a que me trouxe as primeiras lembranças de uma Copa do Mundo, interessante perceber que um grande nome, inesquecível para nós, surgia: Paolo Rossi.