segunda-feira, 30 de julho de 2012

A PIADA MORTAL[1]


“Estive pensando muito ultimamente sobre você e eu. Sobre o que vai acontecer conosco no fim. Nós vamos matar um ao outro, não?” (Coringa).
“Talvez você me mate. Talvez eu te mate. Talvez mais cedo. Talvez mais tarde” (Batman).
No dia 20 de julho de 2012, um jovem de 24 anos, James Holmes entrou num cinema na cidade Aurora, no estado norte-americano de Colorado, equipado com um colete balístico, capacete, máscara contra gás e armado com pistola, fuzil semiautomático e uma escopeta. Após lançar bombas de fumaça na sala de projeção, Holmes atirou contra os espectadores do filme Batman: o cavaleiro das trevas ressurge (Batman: the dark knight rises, 2012), matando 12 deles e ferindo várias outras pessoas.
De acordo com a polícia do Colorado, Holmes não possuía antecedentes criminais, a não ser uma multa de trânsito de 2011. O responsável pelo massacre no cinema em Aurora era o que juridicamente se chama de “primário”.
As armas e munições não foram adquiridas por Holmes num mercado “negro” ou “paralelo”, das mãos de traficantes ou contrabandistas. Elas foram compradas num mercado legalizado nos Estados Unidos, sem que houvesse a obrigatoriedade de qualquer exame psicológico preliminar, já que naquele país, para se adquirir armas e munições, basta ter dinheiro.
Um fuzil semiautomático, como o usado por Holmes (Remington R-115 VTR Predator), custa aproximadamente US$ 1.150,00.
A tragédia de Aurora tratou de lançar luzes sobre uma parceria de muito sucesso nos Estados Unidos: a indústria cinematográfica e a indústria das armas.
Basta lembrar os filmes estrelados por John Wayne, o cowboy que luta bravamente contra os indígenas, os selvagens. Recordar das atuações de Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Bruce Willis, cujos personagens aniquilam os bandidos. Lembrar os embates entre as famiglias na trilogia O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972, 1974 e 1990)[2], em que as desavenças se resolvem com tiros e mortes, quando não, há os “justiçamentos” dentro da própria família Corleone. E como esquecer Robert De Niro, em Taxi Driver (1976) [3], que interpreta Travis Bickle, um jovem alienado e frustrado que ganha a vida como taxista, e que marginalizado e munido de revólveres, liberta Easy (vivida por Jodie Foster), uma menina da prostituição e de seus algozes – o cafetão, os clientes e o dono do hotel onde a tal mocinha atendia seus clientes?
Contra índios, gangsters e homens inescrupulosos, balas!
Isso, sem esquecer os diversos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial e, especialmente, sobre a Guerra do Vietnã um “fantasma” jamais exorcizado nos Estados Unidos. O clássico filme Apocalypse Now (1979) [4], Platoon (1986) [5] e Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) [6] ilustram muito bem a imagem do massacre pelas armas: pistolas, fuzis, granadas, bombas etc. Contra os “malditos comunistas vietnamitas”, os vietcongs, balas!
Contra o crime, balas! Vide os policiais Martin Riggs (Mel Gibson) e Roger Murtaugh (Dennys Glover), na série cinematográfica Máquina Mortífera (Lethal Weapon, 1987, 1989, 1992, 1998 e 2010).
Ao sabor de refrigerante e pipoca, sangue na tela.
Naturalmente, o caso do cinema em Aurora, Colorado, enseja a busca pelo entendimento da atitude de Holmes.
Entre as mais diversas explicações possíveis, farei algumas, que julgo serem pertinentes.
Inegável que o jovem Holmes sofre de distúrbio mental grave, o que, mediante premeditação, levou-o a massacrar as pessoas que assistiam ao filme Batman: o cavaleiro das trevas ressurge.
Mas, além de fatores psicológicos atribuídos a Holmes, há que se pensar na sociedade norte-americana como formadora de uma cultura belicosa.
Walter Boechat argui, em Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo, como cada sociedade traz consigo um modus vivendi construído por sua própria cultura. Ao discorrer acerca de um evento com psicólogos do mundo inteiro, em Chicago, em 1992, Boechat faz menção ao incômodo experimentado por um colega norte-americano pelo fato de ter passado alguns minutos de mãos dadas com outros homens, durante uma dinâmica de grupo.
“[...] demo-nos as mãos e fechamos os olhos, iniciando o método de imaginação dirigida. O contato corporal entre homens – de mãos dadas – se tornou objeto de reflexão, e pelos comentários posteriores, mostrou ser a vivência que mais mobilizou. Várias associações deixaram claro como o contato corporal entre homens se tornou tabu.
O corpo, a expressão material da personalidade, é nossa matéria perceptível. É manter-ia, pertencente ao universo do maternal-feminino. Ficou claro a dificuldade de contato corporal entre os homens. As associações mais marcantes foram para mim as de um analista americano, de barba branca, aparentando já uns setenta anos.
Disse ele que lhe causava enorme estranheza segurar por tanto tempo as mãos de dois outros homens. Ser afetivo significava das as mãos, e desde cedo foram educado para ser afetivo com mulheres somente, num contexto de virilidade e sexualidade dominadora. [...] E, sem seguida, disse: sempre fui educado para competir com homens, para superá-los; já superei muito homens, já matei vários homens...” (Boechat, 1995, p. 22-23).
Vê-se, pelo depoimento, como os papéis em sua sociedade estariam bem definidos. Atitudes atribuídas à porção anima (feminina) do ser humano, como pegar na mão de outro homem, na sociedade norte-americana, seria incompatível com o animus, o lado masculino do ser humano. Portanto, “homem que é homem não segura a mão de outro homem”. A distância entre dois homens tornar-se-ia uma regra entre aqueles que afirmam sua masculinidade, exclusivamente heterossexual.
Para compreender tal hipótese, faz-se necessária uma digressão histórica ao processo de colonização dos Estados Unidos, cabendo, de plano, recordar que foram os ingleses os primeiros ocupantes (após, é claro, os nativos indígenas) daquela terra, foragidos das perseguições religiosas na Europa e expulsos de seus meios de subsistência tradicionais, tendo em vista o período de industrialização já em curso na Inglaterra.
Ao chegar à Terra Nova, os viajantes do May Flower tiveram que se proteger contra as investidas dos nativos descontentes com a chegada dos colonos, além de consolidar suas posses no território, o que não constituiu tarefa fácil.
Liberdade e propriedade constituíram os primeiros direitos a serem resguardados nas colônias norte-americanas. E para defendê-las, era preciso munir-se de armas, com vistas a exercer tais direitos, em face tanto dos indígenas como de seus semelhantes. Assim se construiu a posse da arma como um direito.
Coube ainda cada cidadão o direito de se rebelar contra um governo injusto, conforme apregoava Thomas Paine. Afinal, não teria sido por outra via que não o uso das armas que os Estados Unidos conseguiriam a independência da Inglaterra.
Teria sido, pois, a partir do enfrentamento aos nativos, da proteção da propriedade e do processo belicoso de independência que os colonos dos Estados Unidos (re)afirmaram uma identidade anglo-saxônica baseada no “ethos guerreiro”, utilizando expressão de Norbert Elias. A honra, a tradição e o desprezo aos fracos, aliados à necessidade de se defender de ameaça alheia, enquanto bases desse ethos, fizeram como o porte e o uso de armas fosse consolidado como um direito inerente ao “homem viril”, cuja predominância do animus estaria latente, como o cowboy reencarnado gerações após gerações.
Mas, provavelmente, a loucura de Holmes seria encorajada por uma sociedade que prioriza o consumo, especialmente de armas de fogo.
Há que se ressaltar o lobby efetuado pela indústria de armamentos no contexto político. A National Rifle Association (NRA), entidade que defende a liberdade de venda de armas, apoiada na segunda emenda às Constituição dos Estados Unidos, de 1791, que se refere ao direito de formação de milícia privada (resquício da guerra da independência contra a Inglaterra), conseguiu arrecadar acerca de US$ 250 milhões em contribuições.
Um click no desequilíbrio mental grave, uma arma na mão e um local cheio de pessoas, como a escola Columbine, em Littleton [7], ou um cinema como o Century 16, em Aurora, bastam para uma tragédia se concretizar.
Pois, naquele dia 20 de julho, um jovem viril, consumista, mentalmente desequilibrado, com sintomas de esquizofrenia [8], de 24 anos de idade, James Holmes matou 12 pessoas e feriu dezenas de outras, de maneira premeditada [9], durante a exibição de Batman: o cavaleiro das trevas ressurge. E, ao ser detido pela polícia e indagado sobre seu nome, Holmes teria dito: “eu sou o Coringa”.
Se a resposta de Holmes aos policiais foi uma piada, sua atitude em atirar nas pessoas no cinema em Aurora, certamente foi uma piada mortal, num trocadilho, ainda que infame, com o título da obra de Alan Moore e Brian Bolland, A Piada Mortal (The Killing Joke, 1988).
E como disse Coringa, naquela história em quadrinhos: “A loucura é a saída de emergência” (Moore, Boland, 1988, p. 24). E o homem insano de cabelo verde, continua, afirmando que: “Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu... apenas um dia ruim” (Idem, p. 41).
Em um dia ruim, quis o destino que ficassem frente a frente James Holmes e suas vítimas, entre as quais 12 mortais.
Naquele dia ruim, Holmes saiu das “trevas”, não como Batman (o herói das telas e dos quadrinhos), mas como Coringa (o vilão).
Ao ser preso, James Homes riu e disse ser O Coringa. Uma piada mortal e nada engraçada. Aliás, uma piada trágica.
Notas:
[1] O titulo deste artigo foi inspirado na obra homônima de Allan Moore e Brian Bolland, Batman: a piada mortal.
[2] Série dirigida por Francis Ford Coppola.
[3] Filme dirigido por Martin Scorsese.
[4] Dirigido por Francis Ford Coppola.
[5] Dirigido por Oliver Stone.
[6] Dirigido por Stanely Kubrick.
[7] Referência ao Massacre de Columbine, ocorrido numa escola, em dia 20 de abril de 1999, no condado de Jefferson, no estado do Colorado, quando os jovens Eric Harris e Dylan Klebold atiraram e mataram 15 pessoas, entre colegas e professores
[8] Atirador enviou detalhes do ataque a psiquiatra no Colorado, diz TV. In: O Globo, Mundo, 25/07/2012. Disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/atirador-enviou-detalhes-do-ataque-psiquiatra-no-colorado-diz-tv-5582183. Acesso em 30/07/2012.
[9] Holmes enviou um envelope com o plano completo, ao seu psiquiatra, contendo anotações e um diagrama sobre o ataque que realizaria, como vingança pela reprovação na prova oral no curso de neurociência na universidade em que estudava. Idem.
Referência:
BOECHAT, Walter (Org.). Mitos e arquétipos do homem contemporâneo. 2. Ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.
MOORE, Allan; BOLLAND, Brian. Batman: a piada mortal. Nova Iorque: DC Comics, 2008.

3 comentários:

Guia Informativo disse...

Meu caro Robert, essa questão sempre vem a tona quando acontece um crime ou atrocidade cometido por um menor. Os céticos e conservadores logo levantam suas demagogias afirmando que o fim da violência está relacionada com a redução da maioridade penal, vamos sair encarcerando os jovens infratores e entregá-los a sorte em um sistema penal falido e desumano. Por outro lado muito pouco se fala no fracasso das políticas públicas de educação e nas condições que estão sendo oferecidas a juventude brasileira. Infelizmente quem vem pagando essa conta é a juventude, pobre, negra e parda. São esses também que sofrem e mais morrem devido a violência que é praticada contra eles. Ao invés de reduzir a maioridade penal, vamos cobrar das autoridades brasileiras que as políticas públicas sejam de fato exercidas, esse será o primeiro passo na redução da violência e de uma sociedade mais justa.

Robert Segal disse...

Realmente, a juventude pobre, negra ou parda é que mais vitimiza e a que mais é vitimizada. Um estudo do Instituto de Economia da UFRJ, coordenado pelo prof. Marcelo Paixão, aponta para isso. E, como disse num comentário anterior, reflito sobre a "cobrança da conta" em face da juventude, pelo não cumprimento das promessas de dias melhores para as presentes gerações. As políticas públicas não foram implementadas em sua completude, e, agora, cobra-se de seus destinatários (crianças e adolescentes) o preço final... Ao marcar seu milésimo gol, Pelé, já clamava pela assistência e proteção às crianças, ao ser interpelado pela imprensa, lá por 1969.

Robert Segal disse...

Realmente, a juventude pobre, negra ou parda é que mais vitimiza e a que mais é vitimizada. Um estudo do Instituto de Economia da UFRJ, coordenado pelo prof. Marcelo Paixão, aponta para isso. E, como disse num comentário anterior, reflito sobre a "cobrança da conta" em face da juventude, pelo não cumprimento das promessas de dias melhores para as presentes gerações. As políticas públicas não foram implementadas em sua completude, e, agora, cobra-se de seus destinatários (crianças e adolescentes) o preço final... Ao marcar seu milésimo gol, Pelé, já clamava pela assistência e proteção às crianças, ao ser interpelado pela imprensa, lá por 1969.