segunda-feira, 23 de junho de 2008

ELES AINDA ESTÃO POR AÍ

Eu tinha acabado de fazer dezoito anos, estudava sociologia e freqüentava as reuniões e os eventos promovidos pelo movimento estudantil, quando, em março de 1970, fui presa e levada para um lugar que até hoje não consigo esquecer, onde seria torturada por vários dias. Eles queriam que eu dissesse o que sabia e o que não sabia.
Fui amarrada numa cadeira (a tal “cadeira do dragão”) e submetida choques elétricos até não agüentar mais. Além dos choques e das surras, fui violada inúmeras vezes. Eles introduziam um cacetete em minha vagina, o que, devido às seqüelas, me impossibilitaram de ter filhos. E, além do cacete, fui estuprada dentro das dependências do Estado. Diziam que “eu era comunista por falta de homem” e que iriam “saciar as minhas necessidades”. Era violentada a cada dia por um homem diferente.
Eu ficava sob intensa vigilância, pois eles temiam que eu me suicidasse, como alguns companheiros que não suportaram as torturas fizeram. Diziam que eu deveria ficar viva para contar para as outras “comunistas” o que acontecia com gente do nosso tipo.
Do dia em que fui presa até a data de minha saída daquele lugar (viva, acho que por um milagre), se passaram cerca de três semanas. E, ao ser solta, ouvi a seguinte frase que não posso sequer esquecer: “olha com quem anda, o que faz e saiba que estamos de olho em você”.
Com muito medo, mas com intuito de sobrevivência, consegui um passaporte falso e saí do país, num longo período de exílio. Foram aproximadamente dez anos, até a tão propalada “Anistia ampla, geral e irrestrita”.
Chegou no Brasil em novembro de 1980, após ter certeza de que outros colegas dos tempos de universidade estavam bem.
Lutei para restabelecer minha vida neste país. Após alguns meses e com a colaboração de amigos, consegui um emprego numa universidade, onde continuo lecionando.
Hoje, resolvi ir à praia, como faço em alguns dias de sol. Enquanto lá estava, sentada em minha cadeira, à beira do mar, vi um dos caras que me torturou e violentou passar caminhando. Jamais poderia esquecer aquele rosto. Aquela visão me trouxe lembranças sombrias daquela época.
Acho até que ele me viu, enquanto caminhava ali na beira d’água. Passou caminhando tranqüilamente como qualquer pessoa anônima.
Não tive mais qualquer vontade de continuar na praia. Arrumei minhas coisas, às pressas, e voltei pra casa. Lá chegando, me tranquei no quarto.
Sem vontade de comer, tomei meu tranqüilizante, pois, graças a ele ainda consigo levar uma vida relativamente normal.
Depois de algumas horas, consegui levantar da cama. Fiquei com medo de sair á rua e encontrá-lo novamente.
Fiquei dias pensando se ele havia me reconhecido e se havia me seguido até a minha casa. Afinal, “eles estava de olho em mim”.
Tento levar minha vida adiante como qualquer outra pessoa. Os médicos diagnosticaram que desenvolvi a síndrome do pânico.
Não requeri qualquer indenização do Estado. Não acreditar que ela irá cicatrizar minhas feridas.
Entretanto, até hoje tento ter acesso aos documentos que dizem respeito a minha vida e de meus companheiros, como o Jonas, meu namorado naquela dura época e que nunca mais vi.
Disseram-me que Jonas foi torturado até a morte. Seu corpo nunca foi encontrado e sua família sequer teve a oportunidade de providenciar um funeral digno.
Éramos jovens e cheios de esperança por um mundo melhor. Nunca pegamos em armas, apenas participávamos de reuniões estudantis e de protestos nas ruas contra aquele Estado de exceção.
Mas, vivo até hoje aprisionada em meio a pesadelos e traumas. Não dia ou noite que me deixem esquecer as torturas e as violações de minha intimidade.
Estou livre em corpo, mas minha alma continua presa.
Mas, enquanto isso, eles ainda estão por aí.

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