quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A MORTE DO AUTOR EM ROLAND BARTHES: pensando a autoria em tempos de redes sociais virtuais


Introdução
O presente artigo traz como objeto de análise e reflexão o ensaio intitulado A morte do autor, escrito por Roland Barthes e, originalmente, publicado em sua obra O rumor da língua[1], em 1984[2].Nesta obra, especificamente em relação ao autor, Barthes traz uma crítica à concepção moderna da figura daquele, enquanto pessoa que escreve algo, e da crítica literária de uma época.
Para Barthes, o que está em jogo é modo pelo qual a crítica literária tem atribuído sentido às obras escritas, a partir da importância que dá às mesmas, uma vez que “a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua ‘confidencia’”[3].Para a crítica literária moderna, ainda de acordo com Barthes, compreender uma obra implicaria necessariamente considerar o ato criador do autor, como um artista desgarrado da tradição antiga e, portanto, com uma inspiração “divina” da Renascença – que, mesmo fundada na revalorização das referências culturais da Antiguidade, colocava o homem com centro do universo – e, posteriormente, como uma espécie de criatura singular, enquanto típica criação da Modernidade capitalista.Até então, o autor era visto pela crítica literária como um “gênio” que, por seu ato criador, a partir de uma concepção individualista, com suas bases no capitalismo efervescente, seria o legítimo detentor de sua própria obra.No entanto, para Barthes, isso se rompe, aos poucos, posto que a mitificação da figura do Autor-Deus foi perdendo espaço para a atenção à linguagem daquilo que está escrito. E é neste momento que se Barthes anuncia a “morte do autor”.Afinal, como assevera ele, enquanto espaço de dimensões múltiplas, onde se “casam e se conflitam escritas variadas [...] o “texto é um tecido de citações”[4].
Por tais razões, ainda na perspectiva de Barthes,
"um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito"[5].
 No caso deste trabalho, assumo pessoalmente os riscos de minhas próprias reflexões, razão pela qual trato de discorrer sobre minhas ideias na primeira pessoa do singular, facultando ao leitor as compreensão que lhe é conveniente.Mesmo porque, como autor, já escrevi algumas coisas que vão desde livros até simples mensagens na rede mundial de computadores (internet), incluindo textos em um blog, e curtas expressões em redes sociais, sobre as quais faço, neste momento, uma reflexão.Minha questão problema nasce a partir de uma constatação: percebi que, mediante diversos compartilhamentos de mensagens de texto, com o decorrer do tempo, parece haver um desligamento – para valer-me de expressão empregada por Barthes – entre aquilo que escrevo e a minha pessoa, considerando que sou o autor daquilo que eu próprio produzo.Eu mesmo já me deparei com mensagens por mim escritas e que, devido à quantidade de compartilhamentos – gentilmente efetuados por meus amigos virtuais – parecem distanciaram-se de mim, ficando perdidas no ciberespaço[6].Além do compartilhamento, existe a possibilidade de se copiar uma mensagem e efetuar sua colagem, como se fosse da autoria de quem quer que seja. O que para alguns pode ser tido como plágio, para outros, nada mais parece ser do que estar de acordo com as próprias regras do “jogo social” na rede virtual. Quanto a isso, parece haver uma liberdade ilimitada nas redes sociais, contradizendo outras situações, como aquela concernente às implicações pessoais e meso legais advindas de certas manifestações do pensamento. Mensagens de cunho preconceituoso, que envolvam violência contra animais, abuso infantil, entre outras, comumente são rechaçadas pela “comunidade”, quando o próprio moderador não se encarrega de deletar a postagem e bloquear o perfil do transgressor, bem como, em casos mais drásticos, excluí-lo da ágora virtual.
Voltando à minha experiência, em determinados casos, é como se eu morresse enquanto autor daquilo que próprio escrevi. Morte esta que, aliás, torna-se foco de minha preocupação neste mesmo artigo.Advirta-se, desde já, que não pretendo lançar um olhar sobre a morte do autor, na perspectiva de Foucault[7], uma vez que não estou preocupado, neste exato momento, com a relação que se estabelece entre sujeito, discurso e poder.
O que pretendo aqui é analisar a autoria, a partir da relação que o leitor estabelece com o autor de uma obra que se encontra à sua frente.
Autoria, morte e (re)nascimento: a inversão do mito autoral
Ontem, postei um pequeno texto numa rede social. Hoje, pela manhã, já tinha percebido que havia várias “curtidas”, alguns “comentários” e mais alguns “compartilhamentos”.Confesso que fiquei contente com a atenção de meus amigos – ainda que virtuais – para comigo e com aquilo que eu havia escrito. Alguns curtiram, outros comentaram, enquanto outros compartilharam meus pensamentos.Agora, à noite, vejo como o que eu escrevi já foi tantas vezes compartilhado naquela mesma rede social – de Fulano para Sicrano, de Sicrano para Beltrano, e assim vai – que já nem vejo mais referência à minha pessoa como autor daquilo que eu mesmo escrevi. Observo, inclusive, que existem comentários sobre o que originalmente escrevi em compartilhamentos alheios, sem que meu nome sequer seja mencionado.Poderia até ficar aborrecido com a possibilidade plágio. No entanto, por ora, preocupo-me como aquilo que Barthes chama de a morte do autor, pelo que fico pensando em como o que escrevi se afastou da minha pessoa.Vislumbro até a possibilidade de eu mesmo ter morrido naquela rede social, de compartilhamento em compartilhamento.A morte nas redes sociais nem é uma possibilidade absurda, eis que basta alguém excluí-lo do perfil de amigos e/ou bloquear seu acesso ao perfil dele que você já era (pelo menos para quem assim procede).Tal reflexão é plausível à medida que me vem à mente a premissa de Barthes[8] de que “a escrita é a destruição de toda voz, de toda a origem”.Na perspectiva de Barthes[9], o autor seria uma invenção moderna, com suas bases no empirismo inglês, no racionalismo francês e na fé pessoal da Reforma, dando ao indivíduo um prestígio de “pessoa humana”, um protagonismo sem igual. E, segundo ele, isso teria acabado.Ademais, incide a questão temporal, posto que, como autor, tornei-me passado daquilo que eu mesmo escrevi na tal rede social, ainda que pensamento e linguagem sejam simultâneos, conforme propõe Merleau-Ponty[10].
E, nas redes sociais, isso fica mais evidente. Da impressão de Gutenberg ao digitar de textos numa rede social, eis que, o compartilhamento daquilo que escrevo – e mesmo qualquer pessoa assim o faz – traz à tona à inversão do mito do criador, problematizada por Barthes. Isso porque, como propõe este pensador, o “nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor”.Isso se faz possível à medida que não escrevo para mim, mas, justamente, para ser lido, pensado e quiçá, compartilhado entre outras pessoas.Ademais, seria soberbo de minha parte crer que aquilo que escrevo é uma criação exclusivamente minha, posto que reconheço que também “misturo as escritas” (para valer-me de expressão de Barthes), enquanto ação de pela qual, em meu trabalho, “costuro” um “tecido de citações”.Posso, inclusive, assumir-me como aquelas mulheres rendeiras do nordeste brasileiro que, a partir de conhecimentos adquiridos, de gerações em gerações, compõem suas artes em tecidos coloridos, com formas e desenhos variados. O pensamento em suas mentes e a expressão em suas mãos hábeis, como demonstram em uma renda bilro, por exemplo, passando linhas de mãos em mãos e dedos em dedos, rapidamente, trazendo para a realidade aquilo que encontra-se no plano das ideias.
Assim, talvez, o distanciamento da ilusão de que seria eu um Autor-Deus – como poderia vir a acreditar, na Renascença ou na Modernidade, segundo a visão de Barthes – e, consequentemente, o fato de assumir que sou um mero “costureiro” ou “alfaiate” de um texto que escrevo tragam-me um conforto e consciência de minha própria humanidade.
Aquilo que escrevo é apropriado por um ou diversas pessoas, como alguém que veste uma roupa feita por um alfaiate. A “arte têxtil” cabe em seu corpo, de acordo com suas expectativas. Em alguns casos, quem veste a tal “arte”, sob a forma de uma roupa, pode customizá-la: excluir alguma parte ou acrescentar algo à peça, dando-lhe a sua identidade própria.
No entanto, isso não significa que estou obrigado – ou qualquer pessoas assim esteja – a escrever para agradar o gosto dos outros, como quem produz uma comida, roupa ou outro bem à la moda fit.
Mas, ainda sobre a tomada daquilo que é escrito por alguém, pode-se imaginar os perigos advindos de tal atitude, como se viu, por exemplo, na apropriação dos escritos de Nietzsche[11] pelos nazistas, durante a primeira metade do século passado, bem como vê-se o problema da apropriação, inclusive indevida, daquilo que escrevemos. O super-homem nietzscheano[12] é a prova cabal disso, utilizado para forjar uma “raça superior” e exterminar milhões de pessoas nos campos de concentração e extermínio, pela Europa.
Em situações como essa, mesmo na ausência de previsibilidade do autor, numa metáfora, o doutor Jerkyll acaba por criar, ainda que involuntariamente, um monstro – Hyde – sobre quem acaba por perder o controle. A criatura liberta-se de seu criador e, de sonho, torna-se um pesadelo[13].
E, em tempos de “politicamente correto” a questão daquilo que escrevemos e os outros leem e, por vezes compartilham, torna-se mais delicada. Neste sentido, o diálogo nem sempre é claro entre as partes envolvidas.
Numa outra via, a possibilidade do afastamento da escrita de seu autor, prenunciando sua própria “morte”, faz com que possamos ler Heidegger sem que, necessariamente, sempre nos deixemos levar por seu já conhecido atrelamento ao partido nazista, o que, inclusive, o teria levado a ocupar o cargo de reitor da Universidade de Freiburg[14].
O mal-estar de saber que Heidegger foi um nazista[15] e que não se deteve enquanto milhões de judeus eram exterminados nos campos de concentração é, senão dissipado, amenizado, para que, finalmente, pessoas como eu (que tivemos parentes próximos ou longínquos exterminados) possamos ler o mencionado “gênio”.
Como dito, para Merleau-Ponty, pensamento e linguagem[16] nasceriam juntos, pelo que o solipsismo cartesiano[17] seria uma alternativa para a preservação da vida intelectual de uma pessoa. O “penso logo existo” (cogito ergo sum) manteria a vida de uma pessoa, contanto que ela própria nada escreva. Uma vez que algo se escreva, em primeira instância, estar-se-ia diante de sua “morte”, pelo imediato desapego de seu corpo, por intermédio de uma obra intelectual expressa em contrações musculares que estimulam a escrita, em relação à sua alma. Da mente ao corpo, do corpo ao preto e branco.
Contudo, numa instância mais radical, a própria alma estaria condenada a ser subjugada por quem dela se apropria. Afinal, não é raro o questionamento acerca da impossibilidade do afastamento da mente do autor em relação aquilo que ele escreveu.
Volta-se, pois, a questão concernente a Heidegger, por exemplo, em saber se é possível ler seus escritos sem que, no entanto, seja possível esquecer que o mesmo foi um nazista. O mesmo pode-se dizer em relação a Rousseau, autor de Emílio ou da educação[18] – um marco literário no campo da educação –, entre outros escritos, e que, sabidamente, abandonou todos os seus filhos.
Que fique claro que não se trata aqui de uma discussão sobre ética, mas de um debate meramente no campo da linguagem, tomando a antropologia filosófica como meio de análise da questão proposta.
Trata-se de um ponto nodal para se compreender o distanciamento entre o autor e quem se depara com o que ele escreveu. Neste sentido, tomando a morte do autor em Barthes, pode-se perceber como Nietzsche, Heidegger, Rousseau e tantos outros “morreram” em seus escritos – antes mesmo de tornarem-se cadáveres – diante da apropriação de suas obras por um número quase infinito de leitores. E morreram esquartejados, cujos pedaços foram consumidos segundo a conveniência de cada leitor ou massa de leitores.
Há ainda quem rumine um pouco de Nietzsche, saboreando-se com seus aforismos sobre os problemas ligados ao homem, um pouco de Heidegger, ao debruçar-se sobre as questões de ordem ontológicas ou fenomenológicas, um pouco de Rousseau, quando se pensa nas questões ligadas à educação...
Assim, recorrendo a uma metáfora mítica, à parte da racionalidade apolínea – ensejadora da escrita, enquanto manifestação racional, artística e autoral, ligada à uma identidade específica –, a mesma escrita permite o esquartejamento do autor por todos aqueles que de sua obra se apropriam, como os presentes aos bacanais dionisíacos que consumiam as carnes de um touro ou bode abatido.
O preto e branco numa superfície real ou virtual revelam-se como a carne do autor, devorada por aqueles que são chamados a participar de um ritual que assume uma aparência trágica, para se utilizar de expressão de Nietzsche[19], especialmente nas rede sociais, onde o autor entrega-se à antropofagia por parte de seus leitores. Se, por um lado, a escrita implica, inclusive, nas redes sociais, a “morte” do autor, por outro, possibilita o seu renascimento dionisíaco, estimulado por escrever mais e ser novamente devorado, como um touro nos bacanais promovidos pelo deus helênico Dionísio, ressuscitando-o, a cada vez, em forma de brincadeira juvenil[20].
Ao autor pode-se atribuir, portanto, a sua vertente trágica: do principium individuationis ao uno primordial, da autoria individual à apropriação coletiva de sua escrita[21].
Conclusão
Barthes lança luz sobre a ruptura da visão de autoria fundada na crença divina da Renascença e do individualismo capitalista da Modernidade, como produto da concepção da figura de um Autor-Deus, cuja mente haveria concentrar as preocupações da crítica literária até então.
O que Barthes propõe é a busca de um modo de percepção em que os textos não sejam tomados como meras criações individuais mas, ao contrário, como obras coletivas, com base na relação que se estabelece entre o que foi escrito e o leitor.
Isso ajuda a perceber como a autoria não é uma “dádiva”. No máximo, uma possibilidade de trazer à mente várias ideias, partes de obras lidas, escritas por um sem número de pessoas, realizando uma espécie de bricolage. Quem escreve algo o faz a partir de um vasto arcabouço adquirido mediante a leitura de outras obras, previamente lida.
Tal fato também contribui para uma reflexão sobre a apropriação por parte dos leitores daquilo que alguém escreve e, inclusive, neste momento, compreender, em tempos de redes sociais virtuais, a dinâmica do compartilhamento do que deixamos à disposição das pessoas.
Trata-se de, como assinala Barthes, pensar o autor a partir da relação que os leitores mantém com seus escritos. “Break oh through (to the other side)” – “atravesse para o outro lado – , já dizia Jim Morisson, à frente da banda The Doors. Esta seria uma proposta.
Tem-se, pois, como concebeu Barthes, a morte do autor atrelada ao nascimento do leitor.
Assim, no meu caso, entendo perfeitamente a minha morte, a partir daquilo que eu mesmo escrevo nas redes sociais. Morro inúmeras vezes, por certo, a cada vez que escrevo. Tal morte se consolida com a apropriação daquilo que escrevo por meus leitores.
E sei que faço o mesmo em relação a vários autores, cotidianamente.
Mas, de igual sorte, acredito que hei de renascer para escrever mais e mais, enquanto você lê e, pensando, torna-se coautor daquilo que comecei a “costurar”, na medida em que já pensa sobre isso tudo e, de acordo com seu gosto, também já pensa em retirar ou acrescentar algo.
Referência
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. Rumor da língua. [Trad.] Mario Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes: 2004.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1987.
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. [Trad.] Maria Ermantina Galvão. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Còllege de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. [Trad.] Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
LÈVY, Pierre. Cibercultura. [Trad.] Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999.
LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. [Trad.] Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. [Trad.] Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. [Trad.] Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. O nascimento da tragédia, ou helenismo e pessimismo. [Trad.] J. Guinsburg. . São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Emílio ou da educação. [Trad.] Sergio Millet. 2. Ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1973.
RUTA, Christina. Cadernos autobiográficos reavivam debate sobre Heidegger e o nazismo: lançamento gradual de escritos inéditos de 1930 a 1970 – os “Cadernos negros” – lança luz sobre papel do antissemitismo no pensamento do filósofo. Publicação de correspondência privada anuncia novo round no debate. Deutsche Welle, Notícias, Cultura e Estilo, 16/03/2014. Disponível em http://www.dw.de/cadernos-autobiogr%C3%A1ficos-reavivam-debate-sobre-heidegger-e-o-nazismo/a-17488624. Acesso em 28/10/2014.
STEVENSON, Robert Louis. O médico e o monstro: Dr. Jerkyll Mr. Hyde. [Trad.] José Paulo Golob, Maria Angela Aguiar e Roberta Sartori. São Paulo: L&PM, 2002.





[1] Originalmente, publicado com o título Le Bruissement de la langue.
[2] Neste trabalho, utiliza-se como fonte a edição publicada no ano de 2004, pela WMF Martins Fontes.
[3] BARTHES, 2004, p. 66.
[4] BARTHES, ibidem, p. 68.
[5] IDEM, ibid., p. 70.
[6] Apoio-me na definição de ciberespaço de Lévy (1999, p. 17), para quem este “é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial de computadores”.
[7] FOUCAULT, 2011.
[8] BARTHES, op. cit., p. 64.
[9] IDEM.
[10] MERLEAU-PONTY, 1991.
[11] Refiro-me, por exemplo, à obra Assim falou Zaratustra.
[12] NIETZSCHE, 2011.
[13] STEVENSON, 2002.
[14] RUTA, 2014.
[15] STEINER apud LLOSA, 2013, p. 18.
[16] E não há como negar que a escrita é uma forma de linguagem. Cf. MERLEAU-PONTY, 1991.
[17] DESCARTES, 2005.
[18] ROUSSEAU, 1973.
[19] NIETZSCHE, 1992.
[20] BRANDÃO, 1987.
[21] Não confundir com a criação coletiva de uma obra ou com obras sem autoria, como se verifica nas tradições orais, nos textos sagrados (Bíblia e Torá, por exemplo) ou mesmo em alguns escritos gregos da Antiguidade. N.A.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

SER E TEMPO EM HEIDEGGER: e os meus gametas?


                                                                                                                            
És um senhor tão bonito 
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo

Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo... (Trecho da canção "Oração ao Tempo", de Caetano Veloso)

O presente trabalho decorre das exposições por parte do docente responsável pela disciplina Seminário de Leitura em Metafísica, prof. Écio Pisetta, no curso de filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), no segundo semestre do ano de 2013.
O foco de leitura se deu sobre a obra O conceito de tempo, de Martin Heidegger, a partir de uma conferência sua, pronunciada em julho de 1924, para a Sociedade de Teólogos de Marburgo, Alemanha.
Interessa consignar que minha atenção neste curso veio, em alguma medida, se deu ao encontro de minha experiência com relação às minhas filhas – Alice e Sofia, nascidas no último dia 06 de dezembro do corrente ano.
Devido à vulnerabilidade de meus gametas (espermatozoides), minha mulher e eu submetemo-nos a um procedimento conhecido como reprodução assistida, mediante fertilização in vitro. E, uma vez gerados os embriões, os mesmos foram guardados numa clínica especializada, por intermédio de uma técnica de criopreservação ou crioconservação, ou seja, a preservação de células, tecidos e embriões em temperatura em torno de – 196º C, geralmente, com o uso de nitrogênio líquido.
Tal procedimento se deu no início do ano de 2012, o que, considerando que entre a fertilização de gameta reprodutivo feminino – óvulo – e o nascimento de um ser humano com vida normalmente se dá em nove meses, ou entre 37 e 42 semanas, colocou-me frente a algumas questões, entre as quais eu destaco a seguinte: o tempo de minhas filhas não é o meu tempo.
Isso porque: 1. O tempo de gestação (extra e intrauterina) de minhas filhas ultrapassou o tempo convencional, posto que durou um total de 19 meses, até o nascimento de ambas. 2. Optamos por introduzir os embriões que dariam origem às nossas filhas em abril de 2013, mas, poderíamos fazê-lo no ano seguinte, mais a frente ou até daqui a uma década. Até aquele momento, não havia (e talvez ainda não haja) algo que nos obrigue a proceder a inserção imediata de embriões fertilizados no útero de minha mulher, ou de qualquer outra. Nesse caso, ouso dizer que o “tempo nos pertence”. Se é que ele realmente nos pertence? 3. Quando do nascimento de minhas filhas – gêmeas bivitelineas – Sofia nasceu às 20:53, ao passo que Alice nasceu às 20:54. Gêmeas, mas separadas por um intervalo de 1 minuto. Nisso, posso dizer que o tempo de Sofia não é o tempo de Alice.
Pois, são exatamente considerações como essas que se coadunam, pelo menos para mim, aos debates travados em sala de aula, no concernente à obra O conceito de tempo, de Heidegger (1997).
Costumo dividir meus trabalhos em intervalos sistemáticos, em partes, ou tempo, tais como introdução, desenvolvimento e conclusão. No entanto, burlando tal disposição, que aliás, tem uma razão de ser, pretendo discorrer sobre o tempo, em Heidegger, em forma ensaística, aplicado a minha particular experiência, qual seja: preservação de meus gametas e o nascimento de minhas filhas.
O que realmente interessa aqui é trazer à baila algumas considerações sobre o conceito de tempo no encontro ocorrido no dia 14 de novembro de 2013, no Seminário de Leitura, dirigido pelo prof. Écio Pisetta, nas dependências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
A primeira delas se refere à nossa imaginação do tempo como algo dado e exterior, que nos circunda.
Pensado a partir da crença, enquanto algo dado, o tempo relaciona-se à eternidade, mas que a ela não pode medir.
"13. Quem afirma tais coisas, ó 'Sabedoria de Deus', Luz das inteligências, ainda não compreendeu como se realiza o que se faz por Vós e em Vós. Esforça-se por saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volita ao redor das idéias da sucessão dos tempos passados e futuros, e, por isso, tudo o que excogita é vão. A esse, quem o poderá prender e fixar, para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo, que nunca pára? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora, estes não podem alongar-se simultaneamente. Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente" (AGOSTINHO, 1980, p. 263).
A partir daí, pode-se pensar na possibilidade de se medir o tempo (AGOSTINHO, ibidem), tendo, no entanto, que se considerar que,
"O tempo não é apenas uma sucessão de instantes separados. É um contínuo, e, como tal, é indivisível. O tempo, para ser estudado na sua que se metafísica, não se deve dividir no “antes” e no “depois”, mas considerar-se na sua síntese de continuidade" (OLIVEIRA SANTOS; AMBROISO DE PINA, 1980, p. 268).
Com o pensamento de Agostinho (ibidem), há um deslocamento do tempo para a subjetividade, eis que passamos a ter a capacidade de medi-lo, numa dimencionalização do espírito em relação às coisas (inclusive o tempo).
"À parte da teologia, a filosofia proporciona as reflexões acerca do ser-aí (dasein) sobre si mesmo e sobre o mundo. Com isso tem-se consciência de algo, cabendo, com relação ao ser-aí, compreender que,
[...] Ser-aí enquanto ser-no-mundo significa: estar de tal modo no mundo que este ser designe lidar com o mundo, permanecer nele num modo de fazer algo, de realizar, de efetuar, mas também de contemplar, de questionar e de determinar por observação e comparação" [...] (HEIDEGGER, 1997, p. 18-19).
Trazendo à tona a experiência do nascimento de minhas filhas, Alice e Sofia, lembro-me do relógio na parede e do médico obstetra dizendo, no exato momento em que Sofia deixava o ventre de sua mãe: “Aí está a Sofia, às 20:53”.
Após, em ato contínuo, disse, em alto tom: “Aí também está a Alice, nascida às 20:54”.
Pensando nas palavras do referido médico e no relógio na parede do centro cirúrgico do hospital em que minhas filhas nasceram, poderia tomar o tempo como uma sucessão de instantes, considerando um minuto após o outro; um minuto entre o nascimento da Sofia e o nascimento da Alice.
Poderia ainda refletir acerca da coleta de meus gametas e de minha mulher, no início do ano de 2012, o momento da fertilização dos mesmos, até o nascimento de nossas filhas. Mais de 1 ano se passou; 19 meses se passaram; 576 dias se passaram. Poderia, pois, tomar cada dia como um “agora”; cada hora desses 576 dias como um “agora”; cada minuto, cada segundo...
Entretanto, com base na obra e Heidegger (ibidem), poderia pensar o acontecimento como dois “agora”: um “agora antes” e um “agora depois”, um “agora mais cedo” e “um agora mais tarde”.
Desse modo, posso entender que, ainda de acordo com as lições de Heidegger (ibidem), o tempo é aquilo que ele é, e não aquilo que um cronômetro diz o que ele (o tempo) é. Da mesma sorte, não se pode compreender o tempo como algo que nós homens criamos, mas, como algo enquanto parte de sua própria estrutura. O tempo a partir daquilo que questionamos como tal.
Interessa ainda registrar o dito comumente reproduzido por parentes e alguns amigos: “Quando você virar pai, nunca mais será o mesmo”.
De fato, sinto-me diferente. Todavia, se por um lado digo “eu sou (pai)”, isso se dá pela minha relação com as outras pessoas, afinal, não posso pensar o eu sem tu, nem o eu sem nós, por outro lado, penso-me (pai) a partir de mim mesmo.
Haveria o eu considerando um ser-aí, enquanto um ser-aí-no mundo neste “agora antes” e “agora depois”, ou numa sucessão de “agoras”?
Essas são algumas reflexões que trago comigo e compartilho com algum leitor, entre tantas outras elucubrações possíveis, agora, a partir da ideia do ser-aí-a-cada-momento (jeweiligkeit).
E meus gametas? Estão aí, no mundo, como Alice e Sofia.

Referência
AGOSTINHO, Santo. Livro XI: o homem e o tempo. In: ______. Confissões. [Trad.] J. de Oliveira Santos; A. Ambrosio de Pina. Confissões; De magistro. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores.
HEIDEGGER, Martin. O conceito de tempo: conferência pronunciada para Sociedade de Teólogos de Marburgo, Julho de 1924. Cadernos de tradução, n. 2, DF/USP, 1997, p. 7-39.

domingo, 18 de agosto de 2013

OSSOS E ESPÍRITO: E OS CROCODILOS?


Após muitos anos, retornei àquela casa que, há décadas, havia sido uma escola em que eu frequentei, em parte de meu ensino fundamental, lá pelos idos de 1980. Trata-se do Colégio Anglo-Americano, em botafogo, que agora é a sede do Instituto Daros na América Latina – a Casa Daros, como é conhecida –, cuja sede internacional fica na cidade de Zürich, Suíça.
Ao chegar àquela casa, logo de cara, deparei-me com um caixão fúnebre feito de lego, bem na entrada, com as cores da bandeira da Colômbia, eis que fazia parte de uma coleção artística de pessoas daquele país.
Naturalmente, aquela peça ali na entrada, subitamente, trouxe-me uma torrente de lembranças boas e outras ruins de meus tempos de escola. De qualquer forma, ao ver aquele mesmo caixão e com meus sentimentos, fiquei pensando em que medida ficamos “enterrados” ao passado, como, no caso, ao nosso passado juvenil. Afinal, alguém consegue esquecer os tempos de escola?
Comumente, trazemos algum souvenir do “cemitério” para nossa casa, como fotos, escudo da escola, carteirinha estudantil etc.
Assim, naquele dia, eu transitava pelo “mausoléu”, curioso com as obras de arte ali expostas e as alterações arquitetônicas da casa. O andar térreo, destinado ao Jardim de Infância e ao Curso de Alfabetização, agora, são um restaurante, uma sala de atividades lúdicas, uma biblioteca etc. No andar superior, antes com as salas das séries do Ensino Fundamental e Médio, no momento, abriga as salas de exposições  artísticas. No pátio, onde antes ficavam uma piscina e um parque, agora está livre; um espaço em que ocorrem atrações musicais, por exemplo. Do outro lado, onde era um teatro, fica um auditório, e por aí vai...
Depois de transitar por várias salas, me vi diante de uma peça retangular feita com vários ossos, ligados entre si. Pensei, pois, se após me deparar com aquele caixão na entrada e sentir-me, de alguma maneira, enterrado naquele espaço, não chegara a hora de exumar-me das minhas lembranças. Mas, a memória acaba por se tornar uma espécie de ponto de fusão entre lembranças. E na mesma sala dos ossos, havia uma gravação numa das paredes: “El crocodilo de Humboldt nos és el crocodilo de Hegel”.
Para aqueles que não sabem, Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander Von Humboldt (1769-1859) foi um geógrafo, naturalista e explorador prussiano, com contribuições à ciência. Seria ele inclusive o responsável pela introdução de expressões como “jurássico”, período terrestre que compreende entre 199 a 145 milhões de anos atrás.
Pois, o crocodilo é considerado um animal cuja origem remonta o período jurássico.
Quanto a Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) este é responsável pela filosofia na qual a mente teria em si um conjunto de contradições e oposições que ora se unem ora se opõe, sem, o entanto, se eliminarem.
Ainda com relação ao tal crocodilo, este se refere a uma arte de José Alejandro Restrepo, pelo que se pode entender a diferença de pensamentos de Humboldt e Hegel. Enquanto o primeiro formulou seu conhecimento no empirismo, mediante suas viagens para além do continente europeu, o segundo formulou sua tese no plano ideal, racional.
Aqueles ossos, aquele caixão, aquela mensagem na parede e aquela escola teriam o significado que tem para mim se lá eu não estivesse décadas atrás? As ideias dependeriam da experiência? As lembranças boas e ruins conseguiriam reduzir ou eliminar umas às outras? De Humboldt a Hegel.
Seja como for, meus ossos e meu espírito ainda “caminham” juntos. Mas, há um pouco de mim que ficou enterrado naquele espaço cultural que, um dia, foi uma escola onde estudei. Outra parte foi exumada e me acompanha ainda hoje. Memória minha lá, e memória da tal escola cá, comigo.
E, afinal, os crocodilos? Bom, acho que ainda estão lá pra quem quiser ver. Mas, não me engoliram...

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

PENSO LOGO EXISTO (OU COGITO ERGO SUM): ceticismo metodológico de um daltônico


Numa noite de julho, sentado a uma das mesas, num canto da sala, na UNIRIO, durante uma aula da disciplina “Introdução à Filosofia”, Baptiste Noel Grasset, o professor, nos propõe falarmos sobre a dúvida, a partir do legado teórico de René Descartes.
Poderia falar de minhas dúvidas sobre a política ou, precisamente, acerca dos políticos, os quais, sinceramente, não sei se ainda tenho dúvidas ou se realmente já os conheço, considerando suas atitudes sínicas. Me defino como republicano e democrata, mas, às vezes, chego até a duvidar tanto da res publica – se realmente é pública –, como da democracia.
Estaria, no entanto, diante de uma experiência sensível.
Poderia discorrer sobre a existência de Deus, como fez o próprio Descartes, e, quiçá, ter uma percepção igual ou diversa dele, de Spinoza, de Nietzsche e de tantos outros. Deus existe? Como? Onde?
Talvez, para conhecê-lo, deveria recitar mantras ou consumir alguma substância como a cannabis, tomar um LSD, ao som de The Doors, com Jim Morrison dizendo “break on through to the other side!”, ou ainda, numa versão light, beber um chá de cogumelo e ouvir um “progressivo”, como Renaissance, na voz angelical de Annie Haslem cantando “ashes are burning”, ou Jethro Tull. Um sonho...
Que mal haveria? Afinal, foi num sonho, no qual estaria em frente uma lareira e com um papel na mão (papel?! ou seda?), que Descartes colocou tudo em dúvida. Ele mesmo, Deus...
Mas, vai que Deus realmente existe e, mediante uma dose a mais, eu não volte?! Prefiro, por ora, desconhecê-lo e manter minha mente e meu corpo juntos!
Poderia escrever sobre minhas dúvidas em relação ao tanto que estudamos e frequentamos as universidades. E para que tanto estudo? Já me graduei em Direito, já fiz mestrado em Educação, atualmente estou, inclusive, em pleno doutoramento nesta área, e, agora, ingressei numa licenciatura em Filosofia. Se vim atrás de respostas, parece que deparei-me com um “gênio maligno”, pois, as dúvidas nunca foram tão persistentes. Aliás, seria o tal gênio maligno o próprio professor Baptiste?
Pois, naquela noite de julho, como se não bastassem as provocações deste professor sobre a existência das coisas, inclusive do homem, e de Deus, segundo Descartes, este mesmo professor (em conluio com a professora Andrea Bieri, para quem vou à aula sempre com meu cachimbo) usa como exemplo a cor azul de uma cadeira próxima a ele.
Ia tudo tão bem...
“Aquela cadeira azul”, disse.
Verdade? Que nada! Eu duvido!
A tal cadeira pode ser azul para ele, mas não para mim, pois, sou dotado de discromatopsia, ou aquilo que popularmente chamam de daltonismo.
Em síntese, o daltonismo pode ser definido como uma disfunção da visão, a qual não tem a capacidade de diferenciar todas ou algumas cores. Isso foi descoberto no século XVIII, por John Dalton, um químico que era portador dessa “perturbação”.
No meu caso, como sou um “cara de sorte”, tenho um tipo mais específico, que atinge somente cerca de 1% (um por cento) da população mundial. Não consigo distinguir vermelho de verde, enquanto cores primárias, e azul de roxo, por exemplo. Mas, também não consigo diferenciar derivações, tais como laranja e ocre, verde musgo e cinza etc.
Um dia, estava em casa, assistindo a uma partida de rugby entre Irlanda e País de Gales. Logo, deparei-me com um problema, já que ambas as equipes trajavam seus uniformes tradicionais. O time da Irlanda jogava com camisas e meiões verdes, ao passo que País de Gales usava camisas e meiões vermelhos.
Não tive alternativa senão perguntar para minha mulher, que àquela altura estava ao meu lado, quem trajava qual cor de uniforme e, portanto, para que lado cada equipe atacava. Fiquei imaginando se eu estivesse em campo, carregando a bola. Para que lado iria? Para quem passaria a bola?
De acordo com a certeza de Descartes sobre Deus, só esse me tiraria dessa enrascada...
A dúvida com relação às cores em minha vida não é fato novo, dada a minha condição. Lembro-me de, quando era criança e gostava de desenhar e pintar, tinha uma caixa de lápis de cor da marca Caran D’Ache, com os lápis numerados e um pantone na tampa da caixa, o que me permitia saber qual cor estava utilizando.
Ganhei aquela caixa de lápis de cor, assim como outras da Faber Castel, mas, todas com números nos lápis e nas caixas.
Por exemplo, na caixa Caran D'Ache, o roxo é numerado de 102, ao passo que o azul escuro recebe o número 159. Enquanto isso, na caixa Faber Castel, o número 53 refere-se ao azul escuro, enquanto o número 55 é destinado ao roxo.
Meu daltonismo foi diagnosticado quando eu devia ter uns oito ou nove anos de idade. Em datas cívicas, por exemplo, eu pintava em roxo o céu das estrelas, na bandeira brasileira, quando haveria de pintar de azul.
Diante de tanta insistência, em trocar o azul pelo roxo, foi recomendado à minha mãe que fizesse um teste, com o intuito de aferir se eu realmente era daltônico. Diagnóstico: positivo. A partir dali, minha vida já teria a marca da dúvida.
Imagina, séculos atrás, eu pintando a bandeira brasileira e inserindo o roxo no lugar do azul. Os positivistas com seu racionalismo fundado na “ordem e progresso” teriam uma sincope, já que o roxo significa, entre outras características, o misticismo.
E na bandeira francesa? Inserindo o roxo, associado à nobreza e ao místico, ao invés do azul, ligado à liberdade. Os jacobinos teriam, provavelmente, cortado a minha cabeça na guilhotina, como um contrarrevolucionário.
E pintar a bandeira norte-americana, trocando o azul pelo roxo? “Um espião inglês! Fuzilem-no!”
Pois, tá aí uma outra coisa engraçada. Nasci numa época em que o mundo estava geopoliticamente dividido entre capitalistas e comunistas. “Nós”, do lado de cá, estávamos sobre a influência dos capitalistas norte-americanos, enquanto “eles”, do lado de lá, estavam sob o jugo comunista soviético. Capitalistas x comunistas, liberais x conservadores, “direita” x “esquerda” etc.
Pois, de lá pra cá, muita coisa mudou. No campo político, ficou realmente difícil saber quem defende qual bandeira. Governos ditos de “esquerda” ou “liberais” cometem os mesmos equívocos, ou até mais graves, do que aqueles de “direita” ou “conservadores”, uma vez que estes últimos tenham sido aparentemente suplantados. Os “vermelhos”, uma vez no lado de cá, praticamente se comportam como os “azuis”. Políticos antes ditos revolucionários defendem, hoje, que a polícia baixe o cacete nos manifestantes ou, quando não, vemos pessoas outrora ligadas a grupos “subversivos” que combateram a ditadura militar com emprego de armamentos, atualmente, no poder, defenderem manifestações pacíficas, mesmo diante de todo infortúnio (corrupção, descaso com os direitos sociais etc.) que assola este país.
Há também aqueles que defendiam o monopólio estatal nos serviços públicos e, tendo se tornado gestores públicos (presidente, governadores e prefeitos), optaram por privatizá-los.
Ao que parece vivemos aquilo que alguns chamam de pós-modernidade, cujas características consistem na ambivalência e na ambiguidade, entre outras. Uma era de confusões de cores e, portanto, de dúvidas.
Assim, sigo duvidando de tudo que para mim não pareça claro e distinto: das cores, se são aquelas que realmente as enxergo; dos políticos, pela própria confusão em seus atos; de nossas e de minhas próprias posições em relação ao mundo etc.
“Só sei que nada sei”, poderia dizer, em eco a Sócrates, numa reafirmação às minhas dúvidas. Aliás, sabendo que ele foi induzido à morte por ingestão de veneno, fico também na dúvida se alguém teria dado ou desejado dar umas porradas nele com aquela história de maiêutica (a partir do questionamento sobre um conhecimento prévio, a proposta insistente de uma nova ideia). “Conhece-te a ti mesmo”, teria dito o pensador grego.
Pois bem. Estava eu em casa, quando o interfone tocou. Era o pesquisador do IBGE, com perguntas para o Censo (pesquisa nacional por amostra domiciliar), a fim de saber quantas televisões, rádios, computadores, geladeiras, micro-ondas e banheiros eu tinha em casa. Pelo que soube, tratava-se de uma pesquisa nacional com o objetivo de diagnosticar o nível socioeconômico do brasileiro, considerando a cor de sua pele.
Não foi por outro motivo pelo qual, num determinado momento, ele me perguntou: “Qual é a sua cor?”
Diante dessa pergunta, disse-lhe, num tom sincero: “Não sei. Por favor, me defina”.
E ele respondeu: “Não posso fazer isso”.
“Mas, por quê?”, insisti.
Foi quando ele explicou-me: “Nós trabalhamos com a cor da pele a partir da autodefinição do entrevistado”.
Bom, quando nasci, fui registrado como de cor “branca”, considerando a cor da pele de meu pai e de minha mãe, num contexto, vale dizer, em que as oportunidades educacionais e profissionais estavam associadas à cor da pele. Quanto mais “branco”, mas chances de sucesso teríamos.
Pensei na minha cor de pele, segundo minha certidão de nascimento, na cor da pele de meus pais, na cor da pele do rapaz do IBGE que me entrevistava, e na relatividade que tal conceito suscita.
“Eu sou quem acho que sou? Essa tal cor é realmente a minha?”, indaguei em silêncio.
Considerando o meu daltonismo e a confusão das cores que ele provoca,  a experiência sensível não tem se dado muito a meu favor. Assim, colocando em dúvida, mais uma vez, a realidade que se apresentava para mim, misturei as cores do pantone do IBGE dentro de mim, como num pote, e respondi-lhe: “Mestiço” (o que o IBGE classifica como “pardo”).
Naquele instante, defini-me pela mente, deixando meu corpo numa posição secundária, como faria Descartes, na busca pelo conhecimento. Separei minhas “substâncias” – mente e corpo. E, pela independência da mente, cogito ergo sum. E, assim, isso se deu graças ao fato de seu ser uma coisa pensante e a meu daltonismo.
Mas, com relação ao resto, sigo duvidando...